O legado de cinco décadas de segregação racial

Em 1948, já depois da II Guerra Mundial, o Partido Nacional, de Daniel François Malan, ministro e pregador da Nederduits Gereformeerde Kerk (NGK, a primeira igreja da África do Sul), com a sua ideologia de segregação racial, ganhou as eleições, com a firme determinação de manter a supremacia da comunidade branca, perante a crescente resistência da maioria negra. Foi o ponto de partida para um regime dos afrikaners - descendentes dos colonos de origem holandesa, francesa e alemã -, em contestação a uma antiga predominância dos brancos de língua inglesa na administração pública e nos meios empresariais.A Liga dos Irmãos Afrikaner, sociedade secreta, tinha por objectivo fortalecer o nacionalismo daquele sector da população, representativo de menos de 10 por cento de todos os habitantes da África do Sul, e desenvolver uma economia por ele controlada, como principal suporte do Governo. Formou sociedades culturais e por todas as formas assumiu um ascendente sobre a sociedade civil.Em 1961, o Governo nacionalista do primeiro-ministro Hendrik Frensch Verwoerd proclamou a República da África do Sul, retirando o país da Commonwealth e introduzindo uma nova moeda, o rand, bem como uma nova bandeira. Era a continuação, por uma forma sistemática e brutal, da política segregacionista que vinha das décadas anteriores e que tinha como parceiro quase único na cena internacional o Portugal de Oliveira Salazar. Logo em 1949 foi aprovada uma lei a a proibir os casamentos entre os brancos e pessoas de outras raças, à qual se seguiria outra a proibir até mesmo qualquer acto sexual entre brancos e não-brancos. O Group Areas Act tornou-se a essência do "apartheid", obrigando a bairros separados para cada uma das comunidades. Casas para brancos, casas para negros, casas para mestiços e casas para indianos. Num mesmo prédio ou restaurante não podiam conviver indivíduos de raças diferentes.Respondendo à segregação, o Congresso Nacional Africano (ANC), cujas origens remontam a 1912, adoptou um Programa de Acção, a pedir boicotes, greves, permanência em casa, resistência passiva e outras formas de manifestações. Walter Sisulu, Oliver Tambo e Nelson Mandela eram os chefes da resistência ao regime de "apartheid". Ao longo dos anos iriam transformar-se em figuras míticas da luta armada."O apelo do marxismo à acção revolucionária era música para os ouvidos de um combatente pela liberdade. A ideia de que a História progride por meio da luta e de que a mudança ocorre em saltos revolucionários era igualmente apelativa. Na minha leitura das obras marxistas, encontrei muita informação sobre os tipos de informação que se deparam a um político prático", explica Mandela na autobiografia, "Longo Caminho para a Liberdade". E de facto acabou por aceitar marxistas nas fileiras do ANC, como Joe Slovo e Ruth First, filhos de imigrantes judaicos."Eu não necessitava de me tornar um comunista para trabalhar com eles. Verifiquei que os nacionalistas africanos e os comunistas africanos tinham geralmente mais a uni-los do que a dividi-los. Os cínicos sempre sugeriram que os comunistas estavam a usar-nos. Mas quem diz que não éramos nós que os estávamos a utilizar?", escreve ainda Mandela, que ultrapassaria meio século de luta para se tornar uma figura de consenso.Em Junho de 1955, cerca de 3000 delegados de todo o país, que as autoridades não conseguiram deter, representando todos os grupos populacionais, incluindo alguns brancos, reuniram-se em Kliptown, próximo de Joanesburgo, para aprovar uma Carta da Liberdade, em grande parte inspirada na Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas. Aí se declarava que a África do Sul pertencia a todos os que nela residiam e que só um Governo baseado na vontade de todos poderia gozar verdadeiramente de autoridade. O que no entanto só viria a ser realidade em 1994.A política de "apartheid" dividiu a população negra em diferentes nações, cada uma delas com a sua "pátria", ou bantustão - como o Bophutatwana, o Ciskei e o Gazankulu. Tratava-se de uma espécie de reservas que viriam a ser teoricamente independentes e às quais cada um viria a ficar ligado segundo os seus laços ancestrais ou língua materna, fosse ela o IsiZulu, o IsiXhosa, o Setswana, o Sesotho ou o Xitsonga, por exemplo. Os direitos políticos dos negros só poderiam ser exercidos dentro do território específico a que pertenciam; e não no conjunto da África do Sul, cujo Parlamento ficava só para brancos, mestiços e indianos. Por meio daquele estratagema, a nacionalidade sul-africana foi retirada a milhões de pessoas, que passaram a ser consideradas cidadãos do KaNgwane, do KwaNdebele, do KuaZulu ou de qualquer outro bantostões, cuja existência como entidades autónomas a comunidade internacional não reconhecia. Necessitavam também de passaporte para entrar na "África do Sul", um país onde segundo a lógica da legislação ninguém seria negro! Em 1953 foi aprovada uma Lei de Segurança Pública que dava a possibilidade ao regime de proclamar o estado de emergência e de aumentar as penas por toda a espécie de protestos contra o sistema jurídico vigente. E, em 1960, um grande grupo de negros concentrados em Sharpeville, perto de Vereeniging, a sul de Joanesburgo, enfrentou durante 156 dias a fúria da polícia. Dos confrontos resultaram 69 mortos e 187 feridos. Isto numa altura em que a maior parte de África que fora colonizada pelos franceses, pelos britânicos ou pelos belgas começava a tornar-se independente.O advogado Slovo, que nascera a 23 de Maio de 1926 na aldeia de Odelai, na Lituânia, e entrara em 1953 para o Comité Central do Partido Comunista Sul-Africano, começou a planear com Mandela uma campanha revolucionária. Surgiu assim, no fim de 1961, o Umkhonto We Sizwe (MK), "a lança da nação", braço-armado do ANC, para preparar bombas e "coktails Molotov". Os primeiros foram feitos na cozinha do sindicalista e mineiro (branco) Jack Hodgson, com a colaboração do arquitecto Lionel "Rusty" Bernstein, outro comunista de ascendência europeia.O chamado julgamento de Rivonia, nome do subúrbio de Joanesburgo onde 16 líderes do ANC foram detidos em Julho de 1963, começou no dia 26 de Novembro desse ano e decorreu até Abril de 1964. Foram condenados a prisão perpétua Mandela, Walter Sisulu, Govan Mbeki (pai do actual Presidente da República, Thabo Mbeki), Raymond Mhlaba, Elias Motsoaledi, Andrew Mlangeni, Ahmed Kathrada e Denis Goldberg. O grupo que hoje congrega as simpatias de pelo menos dois terços de toda a sociedade sul-africana encontrava-se na clandestinidade desde Abril de 1960, altura em que foi proibido. Frederik Willem de Klerk, eleito para o Parlamento pelo círculo de Vereeniging, no qual foi cometido o massacre de Sharpeville, chegou à Presidência da República em 1989. Logo em Fevereiro de 1990 autorizou os movimentos de libertação e libertou os presos políticos, a começar com Mandela, submetendo-se assim às pressões internacionais e ao peso do prejuízo que as sanções estavam a causar à economia sul-africana. O nacionalismo afrikaner perdera a sua razão de ser e os negros iriam começar progressivamente a receber uma pequena parcela da riqueza nacional. Consciente de que não poderia transformar radicalmente a estrutura da sociedade em 10 ou 12 anos, O ANC contentou-se, após a sua chegada ao poder, em 1994, em atenuar algumas das clivagens mais gritantes que existiam no país. Só assim conseguiu reforçar a confiança do seu eleitorado, que nele deposita esperança para o futuro próximo. De acordo com dados do Ministério de Comércio e Indústria, os negros sul-africanos possuem agora 10 por cento das empresas existentes na África do Sul e constituem 15 por cento da mão-de obra especializada. Mas os brancos, que constituem apenas um décimo da população total, continuam a ter privilégios, pois ninguém lhes recusou direitos de cidadania numa terra que, desde há muito, consideram sua. Eles são vistos como imprescindíveis para que o país continue a progredir em todas as frentes, solidificando-se até como motor de desenvolvimento de todo um continente.

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