A ressurreição da carne
1 - Num celebérrimo passo da Primeira Epístola aos Coríntios (I Cor, 15, 14-17) S. Paulo diz que, se Cristo não tivesse ressuscitado, a nossa fé seria vã. Di-lo por duas vezes: no Versículo 14, com a formulação transcrita, e no Versículo 17, em que nos é dito ainda que, se não fosse a Ressurreição, ainda estaríamos em nossos pecados.Esta passagem, incessantemente comentada e incessantemente citada, levantou também múltiplas interrogações. Num sentido literal, a Paixão de Cristo e a Sua morte na cruz consumam o sacrifício necessário à redenção do género humano. Tudo está consumado, bradou, no Madeiro, o próprio Cristo. Se tudo se consumou, para quê o "milagre suplementar", como já foi chamado, da Ressurreição?Para que se cumprissem as Escrituras e o que Ele próprio havia anunciado aos discípulos? Parece explicação demasiado substantiva e demasiado confirmativa.Para que os discípulos acreditassem que era possível um morto ressuscitar? Já tinham presenciado várias ressurreições (a filha de Jairo, Lázaro, etc.) para lhes ser lícita a duvida.Para os reconfortar numa fé vacilante que, dependente da visão judaica e da visão messiânica do Antigo Testamento, não podia aceitar que tudo acabasse com aquela morte infamante, entre ladrões? Judas traiu-o, porque deixou de acreditar que Ele viesse a ser o rei dos judeus. Pedro negou-o três vezes, pois, se estava pronto a matar, não estava preparado para morrer. Dos outros dez, só um - João, aquele que a si próprio se designou como "o discípulo que o Senhor amava" - o seguiu até ao Calvário e lhe presenciou a morte, embora, aos pés da cruz, apenas aceitasse tomar conta de Maria ("Filho, eis a tua Mãe") sem se comprometer com mais do que com uma prova de fidelidade e com uma prova de amor. Os outros - todos - fugiram, aterrados e desorientados, sem saber o que fazer, plausivelmente dilacerados pela dúvida.Ouça-se o que disseram ao Mestre, que não reconheceram, os discípulos do Emauz ao terceiro dia depois da morte: "Esperávamos, todos nós esperávamos, que fosse Ele o libertador de Israel. Mas depois de tudo isto, dois dias após todas estas coisas se terem passado... É verdade que algumas mulheres, que estão connosco, nos perturbaram. Tendo ido ao túmulo de manhã muito cedo, não Lhe acharam o corpo e vieram-nos dizer que lhes tinham aparecido dois anjos que lhes disseram que Ele estava vivo. Alguns de nós foram então à tumba e acharam as coisas como as mulheres lhes disseram que as tinham achado. Mas a Ele não O viram, nenhum de nós O viu mais." (Luc XXIV, 21-24). E segundo o mesmo Evangelho, caminhavam com semblantes carregados.Foi para os animar que o Senhor ressuscitou? Em todos os Evangelhos, e nos Actos dos Apóstolos, os factos contradizem tão simplista interpretação. Quarenta dias passados com Cristo ressuscitado não lhes deram mais ânimo e, depois de terem presenciado a Ressurreição e a Ascensão, continuaram a esconder-se até ao Pentecostes e à descida do Paráclito sobre eles. Durante esses quarenta dias, os episódios narrados (pense-se na famosa incredulidade de Tomé) repetem os acontecidos em vida de Jesus: dúvidas permanentes e acessos de fé tão violentos como passageiros. A Ressurreição não os transformou.Volte-se pois ao capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios, que é o texto fundador da dimensão salvífica do Mistério da Ressurreição.S. Paulo refere-se a várias aparições de Jesus, após a Ressurreição, citando mais do que as que constam dos Evangelhos canónicos. Acrescenta-lhes ainda a própria aparição de que ele teria sido testemunha e objecto na estrada de Damasco, muito posterior à Ascensão. Explica- as - todas - pela graça de Deus. E o que a graça lhe revelou, através da Ressurreição, foi que, se a nossa esperança em Cristo se limitar a esta vida, somos os mais desgraçados de todos homens.A Ressurreição de Cristo retira o poder à morte, põe fim à morte. O homem, criado por Deus para não morrer, morre por causa de um homem, morre por causa do pecado de um homem (Adão). "Ora se a morte, veio por causa de um homem, por causa de um homem tinha também que vir a ressurreição dos mortos. Tal como todos morremos em Adão, todos também ressuscitaremos em Cristo." Seguem-se as passagens mais misteriosas e mais luminosas entre todos os textos paulinos.Aquela em que se fala do diverso brilho do sol, da lua e das estrelas para dar a perceber a diferença entre os corpos físicos, psíquicos (no sentido do princípio vital que anima o corpo humano) e espirituais. "O primeiro homem, Adão, foi feito alma viva; o último Adão é um espírito que dá a vida." (...) "Vou-vos dizer um mistério: nenhum de nós morrerá, seremos transformados (I Cor 15, 40-52). A morte foi submergida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão? (id., 53-55).Cristo ressuscitou - se se pode interpretar um mistério e neste caso o maior mistério -, porque a sua última imagem não podia ser a da morte, do corpo encerrado num túmulo. Era necessário que ressuscitasse, para que alguns O vissem como na vida terrena O tinham visto, para que ele próprio fosse a proclamação suprema do triunfo sobre a morte. Se duvidarmos da Ressurreição, a nossa fé é vã, pois mesmo que a sigamos até à "loucura da cruz", não a seguimos até à "loucura maior" que desvanece a visão da cruz e continua a afirmar o Deus feito homem muito para além da Sua morte.Entre os apócrifos conservam-se fragmentos de um texto copta, conhecido sob a designação de "Livro da Ressurreição de Jesus Cristo pelo Apóstolo Bartolomeu", que, ainda no século V, era citado na teologia mística oriental. Grande parte desse texto é um extraordinário diálogo entre a Morte e Jesus, quando aquela, com os seus seis filhos, penetra no túmulo de Cristo, à procura da "alma que fugiu dela". E Jesus retira o sudário que Lhe cobria a cabeça, olha a Morte e ri-se dela. "E a Morte correu em retirada e caiu por terra com os seus seis filhos." Sob uma forma críptica - poética (identificação da Morte com Satanás) - o texto apócrifo tem paralelo com o texto paulino, sobretudo quando refere que a Morte viu um corpo como jamais corpo algum vira antes.2 - Como foram sete as palavras do Senhor na cruz, sete foram as suas aparições referidas nos Evangelhos canónicos.a) aparição a Madalena, só ou acompanhado pela "outra Maria" (a mãe de Tiago e Salomé) e em Lucas por Maria e Joanab) aparição aos discípulos de Emauzc) aparição a dois discípulos, referida por Marcosd) aparição aos dez apóstolos (sem S. Tomé)e) aparição aos onze, com o episódio de Toméf) aparição no lago de Tiberíades, referida exclusivamente por S. Joãog) aparição referida no prólogo dos Actos dos Apóstolos.Buber observou um dia, comentando um texto de Jakob Boehme, que lhe parecia haver um estranho onirismo nos textos evangélicos referentes à Ressurreição. É uma impressão recorrente, embora dificilmente justificável, pois, se se diz que Jesus apareceu com aspectos diferentes (imagens diferentes?) e que todos os que O viram não O reconheceram imediatamente, nenhum dos evangelistas se socorre de imagens para "descrever" o aspecto ou os aspectos de Jesus. Aliás, nunca, nos Evangelhos, Jesus é descrito fisicamente, o que não deixa de ser perturbante e não tem sido muito sublinhado. Nas passagens em causa é mais estranho, até porque Marcos, falando de um anjo, o caracteriza como "um jovem vestido com uma túnica branca" e Lucas refere dois homens "resplandescentemente vestidos".Mas a contradição maior ocorre entre os dois (Lucas e João) que mais espaço dedicam aos episódios ocorridos após a Ressurreição. Assim, em Lucas, no primeiro encontro com os onze, "atemorizados e aterrorizados porque julgavam ver um fantasma", Cristo diz-lhes: "Donde vem a vossa turbação e porque é que a dúvida vos aflige o coração? Vede as minhas mãos e os meus pés. Sou eu. Tocai-me e verificai que um espírito não tem carne nem ossos como vedes que eu tenho." (Luc, XXIV, 36-40). Depois pergunta-lhes se têm alguma coisa que se coma. Eles mostraram-lhe um peixe grelhado. O Senhor comeu-o à vista deles.João é quem nos narra o episódio de S. Tomé: "Põe aqui o teu dedo; vê as minhas mãos; estende a tua mão e mete-a na minha chaga do lado."Mas, pelo contrário, no mesmo João, quando Madalena O encontra, O confunde com um jardineiro e depois O reconhece dizendo-lhe em hebreu "Rabbuni" (vocativo mais solene que rabi e utilizado para falar a Deus), o Senhor responde-lhe com o célebre "Noli mi tangere". Porquê? "Porque ainda não subi para o Pai."Precisamente em face da mulher por quem tantas vezes, e com tanto escândalo de outros, se deixou afagar, Jesus recusa o contacto físico, que ordena a outros mais descrentes. Aos que não crêem, ou descrêem, impõe o próprio corpo, a carne, os ossos, as feridas, para que creiam que Ele não é um puro espírito, mas um homem como eles sempre O conheceram. Àquela que O reconhece impede o gesto que já não seria de reconhecimento, mas de amor. Mas impede-o momentaneamente. Em terminologia paulina, o corpo psíquico recusa o que o corpo espiritual anuncia e o que o corpo físico dera.Mas pode-se ser mais metafórico. O que Cristo diz a Madalena - e diz a nós todos - é que o Mistério da Sua Ressurreição é intocável. Mas que um dia também a carne, toda a carne, ressuscitará. Por isso mesmo diz o nosso credo "Creio na Ressurreição da carne" tanto quanto "Creio na vida eterna". Uma e outra não são separáveis para quem celebrar, nestes dias, a Páscoa da Ressurreição e a vitória sobre a morte.