Quando Almada foi madrileno
José de Almada Negreiros, uma das figuras míticas do modernismo português, chegou a Madrid a 31 de Março de 1927, onde ficou cinco anos: "Se eu fosse espanhol...", disse numa conferência em 1926, a propósito das dificuldades que sentia em Portugal para cumprir os seus deveres de artista. Mas Almada também saiu de Lisboa, do Chiado, por outras desilusões, uma delas amorosa. Faltavam alguns dias para fazer 34 anos - Almada nasceu há precisamente 111 anos.A exposição "El Alma de Almada el impar: obra gráfica, 1926-31", que hoje é inaugurada às 18h30 no Palácio Galveias, em Lisboa, é sobre os anos espanhóis do artista multifacetado, numa colaboração entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Instituto Cervantes. Um dos seus comissários, Luis Manuel Gaspar, um especialista na obra literária de Almada, diz que, apesar da frase iberista, não se pode dizer que Almada quisesse ser espanhol e cita o que artista afirmou quando recusou o convite para expor no Pavilhão Espanhol na Bienal de Veneza de 1938: "... a minha consciência individual bastou-me sempre até hoje para não me deixar incorrer em faltas de português. Se de facto devo à Espanha melhor trato e mais apreço do que a Portugal, também é um facto que o meu nome é o mesmo que ponho na minha arte, e há-de ser português."O que se pode dizer é que a sua estadia em Madrid, onde fica até 1932, lhe correu bem, muito melhor do que Paris. Almada Negreiros, escreve João Paulo Cotrim no catálogo, "foi recebido em Madrid, de braços abertos, por Ramón Gómez de la Serna". O escritor espanhol, que Gaspar considera das figuras mais importantes da literatura modernista espanhola, tinha-lhe dedicado, meses antes, um panegírico em "La Gaceta Literaria", de onde é tirado o título da exposição das Galveias. Intensa colaboração artísticaMas em Portugal generalizou-se a ideia que essa recepção, triunfal, não correspondia a uma amizade profunda entre Almada e este nome de culto da vanguarda espanhola e europeia que viveu no Estoril quatro anos, onde mandou construir uma moradia. "Podiam não ir para os copos todas as noites, mas isso não interessa. O que interessa é a sua intensíssima colaboração artística", afirma Gaspar. "Temos descoberto uma teia de relações internacionais de que Almada participa, mas em que não é o único. António Ferro é uma figura-chave. Não é só com Espanha, mas também com França e algumas ramificações ao Brasil. Começa com a vinda do casal Sonia e Robert Delaunay, em 1915. É importante saber que durante os anos 20 houve esse convívio que deixou marcas." Gaspar enumera os nomes dos escritores Valery Larbaud, Paul Morand, Eugenio d'Ors ou do pintor Daniel Vázquez Díaz (o Museu Nacional Rainha Sofia, em Madrid, vai-lhe dedicar uma retrospectiva), cuja produção artística tem referências a Portugal. Mas o convívio ou os conhecimentos de Almada são mais extensos e passam também por nomes como García Lorca em Madrid ou Max Jacob, Picasso e Brancusi em Paris.Um livroÉ o resultado da intensa colaboração artística com Serna que a exposição vai mostrar pela primeira vez. "O que é novo é esta relação com o Serna." Sabia-se que tinham colaborado, mas o que os comissários descobriram deu para fazer um livro. Será também hoje lançado, numa edição da Assírio & Alvim e da Bedeteca de Lisboa: "Marginálias" é um fac-símile que reúne as ilustrações de Almada e as crónicas e contos de Serna feitas para as revistas espanholas "La Esfera" e "Nuevo Mundo". Os contos e crónicas de Serna foram traduzidos pela primeira vez e o livro tem também um conjunto de textos que fazem a contextualização histórica, entre os quais o do director do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Juan Manuel Bonet, que dá hoje uma conferência às 18h30 no Palácio Galveias. "São 58 crónicas e contos e uma centena e meia de ilustrações. Olhando para o livro, a sua relação artística é como uma evidência."Mas como a exposição é um projecto global será ainda publicado um número especial do "Boletín Ramón", onde dois investigadores argentinos, Carlos García e Martín Greco, dizem que o escritor espanhol estava constantemente a propor o nome de Almada para ilustrar os textos dele. Está também previsto um número especial da "Colóquio/Letras" sobre as relações internacionais de artistas de vanguarda no início do século XX.Encontro de uma vocaçãoA exposição começa cronologicamente com ilustrações feitas ainda em Portugal para a "Ilustração Portuguesa", em 1913-14. Mostram-se também trabalhos para a revista "parva", banda desenhada e uma tira cómica para o "Sempre Fixe". O trabalho mais ligado à BD continua em Espanha com as tiras cómicas para o madrileno "El Sol". De lá, mandou trabalhos para a "Ilustração" e para a "Magazine Bertrand". A exposição é maioritariamente feita de séries de ilustrações, sequências que apareceram em publicações periódicas como o "ABC", "Blanco y Negro" e nas já citadas "La Esfera", "Nuevo Mundo" e "El Sol". Os originais das ilustrações são cerca de 30, a maioria com origem no arquivo do jornal "ABC" e seis vêm da colecção particular do filho do compositor espanhol Salvador Bacarisse. Estas últimas foram feitas para serem projectadas por uma lanterna mágica, o equivalente ao moderno projector de "slides", durante a interpretação do poema sinfónico do músico e do poeta Manuel Abril. Almada está de volta a Lisboa em Abril de 1932. Sobre o tempo em Madrid, que Cotrim diz que tornou Almada mais Almada e mais artista, o próprio afirmou: "O tempo que aqui passei foi admirável, não só pelo que aproveitei como por aquilo que tive de desprezar; aprendi, enfim." Mas o que é que Almada aprendeu em Madrid? "Ele regressa com uma ideia clara do que quer fazer. Lá, pela primeira vez, deixa de ser tratado como um excêntrico, é tratado como um artista, de igual para igual. É lá que Almada percebe a sua vocação de percurso singular", diz João Paulo Cotrim. Em Madrid, também escreveu teatro, fez decorações murais para dois cinemas e uma residência de estudantes, descobriu a relação geométrica 9/10 (essencial para as experiências abstraccionistas mais tardias).No desenho, Cotrim sublinha que ele já chegou a Madrid dominando, à perfeição, as técnicas - é um virtuoso. "Alarga o seu vocabulário, desenvolvendo o uso do traço para a construção de corpos, que era a sua característica, no sentido do apuramento dos meios tons, do claro-escuro, de uma iluminação cada vez mais dramática." Depois, devido às encomendas constantes, criou "uma forte unidade plástica", onde mostrou "uma pulsão narrativa", a tentativa de construir histórias, sempre renovada pelo desafiante universo da escrita de Serna. "O conjunto das ilustrações de Madrid, embora iniciado antes e prolongado depois, tem uma intensidade feita de luz e perspectiva." Sobre o processo de desenhar, o artista disse: "O desenho não é, como pode julgar-se, simplesmente um conjunto de linhas ou traços, um gráfico representando qualquer coisa existente. O desenho é o nosso entendimento a fixar o instante."Da exposição, João Paulo Cotrim destaca duas ilustrações e uma tira: a pequena casa iluminada de "La lâmpara de gasolina" ("La Esfera", 1930); a mulher de regador de "La collecionista de pisapapeles" ("La Esfera", 1929); e a tira "El Jinete que conducia dos caballos" ("El Sol", 1928)."El Alma de Almada el impar: obra gráfica, 1926-31"LISBOA Palácio Galveias. De 3ª a dom., das 14h às 19h. Encerra aos feriados (sáb., dia 10, possível encerramento). Tel.: 217971326. Entrada livre.