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Conta-me histórias

Stephen Glass, assim se chamava o jornalista (e o título original do filme é bastante mais sugestivo do que o insosso "Verdade ou Mentira" escolhido para a distribuição portuguesa), passou de brilhante promessa do jornalismo americano a falsário escorraçado. Na América, contudo, as coisas têm tendência a ter um final feliz, não apenas nos filmes; é provável que apesar de ter sido desmascarado como impostor Stephen Glass ainda venha a ter o seu "happy end": para já, alguns anos depois, acaba de publicar um romance sobre... um jornalista que inventava os artigos que escrevia. Descobriu, por certo, a sua vocação, e talvez seja mais um caso em que o "american dream" se escreve direito por linhas tortas. No fundo, no fundo, o filme do estreante Billy Ray, que já teve tempo de incorporar nos créditos finais a referência ao romance publicado por Glass, anda um bocado à volta disso.

Não há nenhum "mistério" na organização da narrativa. Não se pressupõe qualquer surpresa, até porque, em princípio, o espectador já deve saber de que é que se está a falar. "Verdade ou Mentira" aposta na reconstituição dos factos, nos pormenores da investigação (primeiro, numa revista "online", depois no interior da própria "The New Republic) que viria a desmascarar Glass, mas sem nunca fazer do desfecho uma questão de expectativas. Aliás, um dos aspectos mais interessantes do filme é o facto de ele funcionar, a esse nível, de modo um bocadinho hitchcockiano: sabe-se qual vai ser o fim, sabe-se tudo o que está em causa, resta saber o como e o quando. A parte final acaba por ser uma narrativa de puro "suspense", com um Glass cada vez mais acossado e angustiado a tentar suportar a sua colecção de mentiras com cada vez mais mentiras, numa espiral de que Ray tira bom proveito.

Por outro lado, a história é contada em montagem alternada com uma palestra de Stephen Glass numa aula de jornalismo, onde é exibido como exemplo de sucesso, modelo a seguir, um vencedor. É na articulação com essas cenas que melhor se elucida uma questão que parece fulcral na perspectiva escolhida por Billy Ray: é que, parece dizer o filme, a linha de separação entre a intrujice e o heroísmo é muito ténue, no limite reduz-se a meros detalhes (por exemplo, o detalhe de um artigo brilhante ser, pese todo o seu brilhantismo, totalmente falso). Em certa medida, "Verdade ou Mentira" acaba por ser um filme comparável, nas coisas que destapa, ao "American Splendor" que propunha, na figura de Harvey Pekar, umas das mais insólitas hipóteses de "herói" americano no cinema dos últimos tempos. Acaba talvez por ser um dos temas recorrentes do mais interessante "cinema independente americano" que cá tem chegado: "winners" ou "losers", muitas vezes as duas coisas ao mesmo tempo como faces das mesma moeda, criaturas assentes numa espécie de representação permanente onde não se distingue com perfeita clareza o ponto em que a impostura se separa da genuinidade.

Nesse sentido é bastante curioso o retrato que o filme faz da personagem de Glass. Não podemos dizer se é um retrato fiel ou não, pouco importa. Mas Glass (interpretado por Hayden Christensen, o jovem Annakin Skywalker da nova série da "Guerra das Estrelas") aparece ao espectador como uma espécie de poço sem fundo, alguém que é impossível perscrutar na sua totalidade. O filme não o julga, nem quando se torna evidente que o rapaz é um mentiroso compulsivo, limita-se a mostrar o julgamento que as circunstâncias ditaram. Mas a personagem concilia uma aura complexa e atormentada, onde há alusões a pressões familiares e a uma obsessão pelo sucesso, com uma pose que faz um permanente ricochete a qualquer tentativa de explicação "psicológica" - nunca sabemos o que vai verdadeiramente na cabeça de Glass, adivinha-se apenas que nele coexistem uma espécie de psicopata e uma criatura sempre assustada, em permanente fuga para a frente (pode ser um disparate, mas já que se evocou Hitchcock, o Glass de "Verdade ou Mentira" podia ser uma espécie de Norman Bates menos sanguinário). Nesse aspecto o filme é plenamente conseguido, desmascarando a personagem apenas na medida em que a realidade o mascarou, mas concedendo-lhe o direito de continuar a envergar a máscara que criou: o grande plano, no fim, em que Glass ouve em silêncio a lista de artigos onde foram detectadas falsidades, acaba por ser uma maneira extremamente pudica e justa de "resolver" uma personagem sem lhe matar o mistério.

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