"Como 'membro' do 'PCP' não pretende prestar quaisquer declarações"

Antes de ser libertada, o inspector Capela garantiu-lhe que, daquela vez, ela saia de Caxias, mas que, seguramente, iriam encontrar-se mais vezes. A afirmação do responsável da Direcção-Geral de Segurança foi premonitória naquele 16 de Abril de 1974, faz agora trinta anos. De facto, Teresa Dias Coelho, voltou a ver o inspector Capela. Mas não na prisão de Caxias. Foi numa paragem de autocarro, algures em Lisboa. "Pensei, vais pôr-te para a aqui a gritar que é pide?", conta Teresa Dias Coelho. Optou por fixá-lo, sem medo. O homem acabou por ir embora da paragem. É que, entretanto, o 25 de Abril trocara o rumo da História e desviara Teresa e todos os outros resistentes das cadeias políticas.Em consequência da revolução, Teresa Dias Coelho não mais teve de combater o fascismo e hoje em dia pouquíssimos são aqueles que sabem que a pintora consagrada esteve um dia dentro das masmorras do fascismo. Mais concretamente, duas vezes, uma das quais, vítima de denuncia, quando tinha acabado de atingir os 18 anos de idade.Hoje, fala da sua experiência às mãos da PIDE/DGS com uma enorme ironia e assume que há muitas coisas de que já nem se lembra. "No primeiro ano, depois de ter saído, lembrava me de tudo, do nome das guardas, por turnos, na tortura do sono, mas, hoje, já não é de todo relevante."O esquecimento é relativo, claro, porque não esquece a solidão e o medo. "Tinha dezoito anos, era um bocado nova. Era muito estranho estar completamente só. E, pela primeira vez, tive a sensação: 'Olha, agora é comigo!....' Aquilo de falar ou não falar. Pensas que não tive medo? Tive um medo do caraças. Mas sempre me ensinaram, a gente não denuncia os meninos na escola. É a mesma coisa. E que mais não fosse, não vais pôr aqui outros a passar o que passaste. A partir daqui os campos estão demarcados. Conheces o teu lado da barricada."E recusa-se peremptoriamente a publicitar o nome de quem a denunciou. Sobre isso apenas diz: "Para quem o fez é pior que do para mim. Fica de certeza para a vida toda." Filha de Margarida Tengarrinha - então dirigente do PCP a viver clandestina no Norte - e de José Dias Coelho - escultor e militante clandestino do PCP morto a tiro pela PIDE, em Lisboa, em 1961 - Maria Teresa Tengarrinha Dias Coelho, nascida a 3 de Setembro de 1954, em Lisboa, foi presa a 10 de Novembro de 1972, na casa das suas tias paternas, na Rua Professor Sousa da Câmara, 136, rés-do-chão, direito, também na capital. Estudava então em Belas Artes. Será libertada seis meses depois, após julgamento, em Maio de 1973."De manhazinha, bateram à porta de serviço a dizer que eram da DGS - eles tinham mudado de nome há muito pouco tempo. As minhas tias trabalhavam nos hospitais, a minha tia que abriu a porta à polícia, pensou, DGS é Direcção-Geral de Saúde", relata Teresa Dias Coelho, rindo ainda do episódio, e desabafa: "Coitadinha, ela depois ficou tão preocupada!"A casa já tinha sido "vasculhada" pela PIDE, mas desta vez os agentes da polícia política queriam um pouco mais. "Eu fui acordada pela minha tia a dizer: 'Está ali a PIDE.' Fiquei em estado de choque. Só me lembrei: 'Lá vão os livros outra vez'. Abri a cama e meti-os debaixo dos lençóis. Depois, tive tempo de pôr a minha agenda e uns panfletos sobre a morte do Ribeiro Santos, dentro da mala da Guida [irmã mais nova], e mandei a Guida 'para a escola, já'."Levada para Caxias é colocada numa cela isolada até Janeiro. Nesses primeiros dois meses de prisão comunica com presas noutras celas por pancadas na parede, cantigas, sobretudo quando apanha as guardas desprevenidas. "Estava a dar uma rádio novela que era o 'Simplesmente Maria' e à hora da novela não havia guardas no corredor, iam todas para a salita e era a altura ideal para tentarmos comunicar", conta Teresa Dias Coelho.Passado mais de uma semana de estar presa é submetida a interrogatórios. "Só vou para interrogatório passados alguns dias, chamaram-me à noite, o que me pôs logo mal disposta, aquilo não advinhava nada de bom." O seu interrogatório é dirigido por um inspector "especializado em intelectuais", de nome José Luís Inácio Afonso. Teresa Dias Coelho assume como estratégia fazer de conta que não sabe de nada ou quase nada. "Pensei, bom vou começar a armar-me em inocente, não percebo por que estou a ser acusada. Partido Comunista sei o que é, como é óbvio não podia deixar de saber, os livros que tinha em casa, pois que sim, sou uma rapariga interessada, gosto de ler, um comprei em Paris, outro em Lisboa, já não me lembro aonde."O inspector, "que não era parvo nenhum" começa a conversar sobre pintura. "A certa altura diz exactamente a frase que servia de senha para o meu encontro, ao pé do cinema Europa, onde corria o filme sobre o Leonardo da Vinci, com a rapariga que falou de mim à polícia. Mas eu estava tanto no papel de inocente que bloqueei e só percebi aquela conversa quando voltei à cela."Perante as não respostas de Teresa, o procedimento evolui e passa a ser submetida à tortura do sono. Onde as guardas se substituíam. "Durante uma semana não me deixaram dormir. A sala era grande e tinha um tecto alto, ao centro havia uma mesa de fórmica e duas gavetas. De um lado e doutro da mesa duas cadeiras. De cada vez que se tentava adormecer a pide de serviço batia no tampo da mesa com as unhas, com as chaves, ou abria e fechava uma gaveta com força. Naquela sala vazia todos esses sons se ampliavam. O barulho de chaves ainda hoje me irrita", lembra Teresa, frisando a importância dos barulhos da prisão, sobre isso, aliás, acrescenta: "Também fiquei sensível ao som do telefone, que chegava regularmente à cela, vindo do fundo do corredor, e normalmente correspondia a chamadas para os interrogatórios. Só fiquei a perceber isso quando fui chamada. Portanto, de cada vez que o telefone tocava e se seguiam passos no corredor ficava-se sempre à espera em que cela iriam parar."No período de tortura do sono os presos ficavam "sem tomar banho", só podiam "lavar a cara e os dentes", relata Teresa, que acrescenta: "As idas à casa de banho eram sempre acompanhadas pelas pides, não havia privacidade." Já as refeições "eram trazidas por um ser sinistro que mais parecia saído de um filme de terror. Era um homem corcunda, coxo e com um olho estropiado, tipo criado de vampiro."A pressão era brutal. "Durante as noites os agentes da brigada que acompanhava o processo entravam e saiam a qualquer hora, por vezes aos pares, para 'conversar', outras, todos juntos para intimidar, dizendo que dali era mais fácil sair morto do que sem falar."O clima intimidatório e o sentimento de impotência está patente nas palavras de Teresa quando fala sobre a tortura: "Das salas de interrogatório viam-se os carros passar na auto-estrada. Quando ia à janela pensava com estranheza que daquela gente que andava na sua vidinha normal poucos saberiam o que acontecia ali dentro. O clima criado era para nos sentirmos completamente impotentes e vulneráveis. Nesse período descobri que o melhor sítio para me esconder era dentro de mim, na minha cabeça ninguém podia entrar, e aí, estava com todos os meus amigos."Como tinha visitas aos domingos, a primeira semana de interrogatórios foi interrompida. Na segunda semana de tortura de sono começa a ter alucinações. "Já sabia o que eram alucinações. As paredes tinham marcas e qualquer marca se transformava noutra coisa. Então viam-se bichos, insectos subir pelas paredes e eu dizia: 'Cá está a boa da alucinação!' Mas não me assustei, fiquei a olhar. 'Deixa ver o que acontece.' Não me meteu grande medo, ainda tinha discernimento para perceber e ter alguma distância. A certa altura, comecei a olhar para o chão e pareceu-me ver coisas escritas, como se outras pessoas tivessem deixado assinaturas.""Não houve mais conversa"Durante a tortura foi-lhe apresentado um dossier com fotografias "Eu conhecia aquela malta toda ou quase. Eram do movimento associativo estudantil, era claro que eu os conhecia, se dissesse que não era estúpida, eles não eram parvos, sabiam por onde eu andava." E vai identificando os colegas e conhecidos, sem problema. "Até que me apresentam a rapariga que foi presa antes de mim e disse o meu nome. Ela era com quem eu tinha contacto mais directo com o partido. Mas no Verão, antes de ser presa, eu tinha estado em Olhos de Água a acampar. E quem é que estava ao meu lado? A tal rapariga. Quando a encontrei à porta do cinema Europa reconheci-a." Face à fotografia da delatora e ex-camarada atira: "Então, claro que a conheço muito bem, estive a acampar com ela este verão. Isso é que eles não estavam à espera. 'Tem testemunhas?' Respondi: 'Então não tenho?! Os nossos amigos todos que estavam à volta.'."Com a tortura do sono as forças de Teresa Dias Coelho vão desgastando-se. "No segundo período, eu já caia em cima da mesa e as pides não me acordavam, estava a chegar ao limite e, entretanto, inchou-me um pé, ficou roxo. Nesse período era-me já completamente insuportável manter a conversa da menina inocente e decidi acabar com aquele registo. Sempre tinha ouvido lá em casa, que alguns membros do partido assumiam a condição de membros do PCP e isto pareceu-me uma saída. E foi. Acabaram os interrogatórios. Não houve mais conversa.".O truque funcionou a cem por cento. Só depois é que Teresa percebeu que tinha exagerado. "Disse-me o Manuel João [da Palma Carlos], ó Teresa isso só os do Comité Central é que dizem. Mas eu achei que aquilo era fantástico. E está escrito, sou do Partido Comunista Português e a partir de agora não digo mais nada. Aí foi um alívio! Porque naquela conversa mole, não podia inventar porque se não esquecia-me das mentiras que podia já ter dito e entrar em contradição."Nos "autos de interrogatório de arguido" pode ler-se que, a quinze de Novembro de 1972, Teresa Dias Coelho afirmou: "Que como 'membro' do 'partido comunista português' não pretende prestar quaisquer declarações. E mais não respondeu."

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