Da ascensão do islamismo à morte de Yassin
"Toda a minha vida sonhei com o martírio; não há maior glória", disse uma vez o xeque Ahmed Yassin. Israel cumpriu ontem este desejo ao assassinar o líder espiritual do Hamas em Gaza, deixando o seu corpo deficiente completamente estropiado.Confinado a uma cadeira de rodas devido a um acidente futebolístico no campo de refugiados de Shati que o deixou tetraplégico ainda na infância, o pregador cego e quase surdo, que se alimentava, falava e movia com a ajuda de familiares e fiéis parecia um homem frágil. No entanto, o seu poder estava nos gestos faciais e nas mensagens que transmitia a quem o seguia. Terá sido ele que emitiu uma "fatwa" (édito religioso) autorizando que o seu grupo usasse, pela primeira vez, mulheres em atentados suicidas. Para Israel, cuja destruição ele defendia sem pudor, Yassin "estava marcado para morrer", porque foi ele que ordenou ou encorajou múltiplos atentados que mataram centenas de civis inocentes. Para muitos palestinianos, dentro e fora dos territórios palestinianos, era um herói carismático, que nunca transigiu nem se deixou corromper na luta contra a ocupação por uma potência colonial. A sua popularidade chegou a superar a do presidente Yasser Arafat, o rival que ousou negociar a paz com o inimigo.Em contraste com Arafat, sempre a fugir da morte e com uma enorme riqueza para gerir, Yassin vivia na pobreza e com pouca protecção num dos bairros miseráveis de Gaza. O seu "Land Rover", sem chapa de matrícula, onde era conduzido à mesquita, era provavelmente o veículo mais conhecido no território, onde a aviação israelita já antes assassinara vários dirigentes do Hamas.Capaz de atrair multidões, Yassin era uma figura venerada em muitos países árabes, onde o islamismo político ganha cada vez mais adeptos contra regimes decrépitos. Em Israel foi várias vezes detido e algumas exilado. Em 2003, sobreviveu a uma tentativa de assassínio. Mas nem sempre foi "persona non grata". Vejamos como ele e o seu Movimento de Resistência Islâmica apareceram para se tornarem tão temíveis.No seu livro, "Armed Struggle and the Search for State", Yezid Sayigh, um dos mais respeitados historiadores e académicos palestinianos, nota que os islamistas nos territórios ocupados começaram a aumentar, em número e em influência, a partir do início dos anos 80. Faziam-se representar por dois grupos principais. Um terceiro, o Partido de Libertação Islâmico, estava totalmente inactivo. O primeiro, e no entanto o mais pequeno, a confrontar abertamente a ocupação foi o Movimento da Jihad Islâmica (Harakat al- Jihad al-Islami). Um dos seus fundadores era Fathi al-Shiqaqi, jovem refugiado de Gaza, licenciado em Matemática e doutorado em Farmácia nas universidades egípcias durante os anos 70.Todos os objectivos da Jihad era partilhados pelo Harakat al-Muqawama al-Islamiyya ou Movimento de Resistência Islâmica, mais conhecido pelo seu acrónimo de Hamas. Um ramo da Sociedade da Irmandade Muçulmana na Palestina, o Hamas era parte integrante da organização criada no Egipto, em 1928. A derrota na guerra de 1967 foi, para estes islamistas, a prova do fracasso do nacionalismo e socialismo seculares. O representante da Irmandade em Gaza era o xeque Ahmed Yassin, refugiado nascido em 1938, numa aldeia de pescadores varrida do mapa da antiga Palestina do mandato britânico, próximo da cidade israelita que hoje tem o nome hebraico de Ashkelon.Sayigh refere que, nas primeiras duas décadas depois de 1967, a Irmandade recusava qualquer acção militar, procurando consolidar a sua base social através de escolas religiosas, centros de infância e de formação profissional para jovens, e clubes desportivos ligados a mesquitas.Neste contexto, a mais importante sociedade era Al-Mujamma' al-Islami (Complexo Islâmico), com sede em Gaza, que iniciou a sua actividade em 1973. O "timing", adianta Sayigh, era significativo: em 1971-72 milhares de jovens activistas da OLP foram presos, deixando um vazio que os islamistas se apressaram a preencher. No final dos anos 70, Al-Mujamma' al-Islami já contava com 2000 membros. Alguns eram profissionais com "background" universitário como Abdullah al-Rantissi e Mahmoud al-Zahar. O problema foi que muitos licenciados, formados sobretudo no Egipto, mergulharam na miséria de Gaza e juntaram-se ao exército de trabalhadores que diariamente mendigava empregos em Israel. Ambições frustradas conduziram ao islão político e depressa os islamistas começaram a desafiar a OLP em eleições para diversas associações em Gaza e na Cisjordânia. Vendo nesta "competição" uma tentativa de encontrar alternativas à OLP, Israel decidiu permitir a legalização de Al-Mujamma' al-Islami, cujo conselho administrativo era presidido por Yassin. Este conselho passou a ser responsável, designadamente, pela Universidade Islâmica, em Gaza, que tinha sido fundada um ano antes pela OLP e por ela era financiada. Por esta altura, os islamistas já controlavam outras instituições públicas e ofereciam empregos, com dinheiros provenientes das petromonarquias do Golfo Pérsico. De 1967 a 1987 (o ano em que eclodiu a primeira Intifada), o número de mesquitas passou de 400 para 750 na Cisjordânia e de 200 para 600 em Gaza.Na ilusão, como escreveram os analistas israelistas Ze'ev Schiff e Ehud Ya'ari, no seu livro "Intifada", de que "os integristas constituíam uma menor ameaça à segurança do país do que os nacionalistas", as autoridades do Estado judaico foram fechando os olhos aos ataques que activistas islâmicos iam fazendo a apoiantes da OLP, no início dos anos 80.Em 1982 ou 1983, o xeque Yassin começou a financiar secretamente os "mujahedin" palestinianos como arma militar da sua sociedade, mas foi preso por posse ilegal de armas. Em todo o caso, a sociedade não mudou de política depois da libertação de Yassin, numa troca de prisioneiros em 1985, mas no ano seguinte ele formou um serviço de espionagem conhecido como "Majid", cuja missão era punir informadores e moralizar as massas. A Irmandade só mudou realmente de rumo, observou Sayigh, quando rebentou a Intifada, em 1987. Em 15 de Dezembro, nasceu o Hamas.Tendo como guia espiritual (murshid ruhi) Yassin, o movimento publicou, em Agosto de 1988, a sua carta fundadora. Os judeus eram responsabilizados por todos os males e a guerra contra Israel era justificada como a continuação do confronto contra os cruzados. Defendia a criação de um "Estado do Islão" em "toda a Palestina" e opunha-se à ideia da OLP de um "regime democrático e secular". Admitia a cooperação com a organização de Arafat mas sublinhava a oposição a qualquer processo de paz que "deixasse uma parte da pátria em mãos não muçulmanas". A libertação era um "dever religioso", mas a luta armada não era especificamente mencionada.Em todo o caso, o Hamas tornou-se, sem margem para dúvidas, uma grande força política, com um exército de combatentes de rua (al-sawa 'id al-ramiya). Em Maio de 1989, o xeque Yassin, toda a liderança e quase 250 outros membros foram encarcerados após o rapto de dois soldados.Por esta altura, a Jihad também já tinha sido decapitada, mas o Hamas susteve os golpes, e não só se reorganizou como se expandiu. Nas prisões, os líderes do movimento procederam a uma transformação estrutural. No final de 1993, o Hamas já tinha um "politburo", um aparato militar, outro de segurança e um terceiro de informação. A reorganização foi, paradoxalmente, facilitada pelo exílio, em Dezembro de 1992, das duas figuras mais influentes do Hamas: Yassin e Abdullah al-Rantisi. A partir de 2000, depois de ter resistido a várias ofensivas, incluindo uma campanha de Arafat para os aniquilar, mas sobretudo encorajados pela vitória do Hezbollah no Líbano, o Hamas e Yassin decidiram enveredar pela "aritmética da morte": as bombas-humanas que podiam equilibrar as "baixas" de um lado e do outro do campo de batalha.