Biodanza
%Sara Gomes
São 16h30 e as aulas na escola EB1 de Manique já terminaram. Há desenhos espalhados pelas paredes e ouvem-se, ao longe, vozes de crianças. É no primeiro andar que as encontramos. São meninos e meninas que frequentam o Atelier de Tempos Livres e esperam pela Manuela (ou Mané, como carinhosamente a chamam) que, todas as quartas-feiras, lhes dá uma aula "diferente" - de biodanza.Assim que a vêem chegar, correm para ela e abraçam-na. Pedem-lhe beijinhos. E olham de soslaio para os "dois amigos" que trouxe. Não sabem que são jornalistas. As educadoras preferiram não lhes dizer para que não ficassem inibidas e, assim, pudéssemos presenciar "uma verdadeira aula de biodanza".Ao todo, são 12 crianças, a maioria entre os cinco e os sete anos. E parecem conhecer bem o "ritual da biodanza": primeiro descalçam-se e depois sentam-se numa roda. Todas ordenadas, sem ser preciso uma única indicação. Os seus olhos estão fixos no fotógrafo. "Tens que dizer 'Olha ó passarinho!'", diz um dos miúdos quando o vê pegar na máquina fotográfica. Quando Manuela liga a música e a aula começa, já se esqueceram da presença dos dois intrusos."Vamos caminhar ao som da música e quando disser 'abraço', vocês abraçam-se uns aos outros e ficam quietinhos como se fossem umas estátuas", diz a professora. Seguem-se outros exercícios, como imaginar que são um espelho e terem que imitar os movimentos uns dos outros, ou então fazerem de conta que são barro, enquanto alguns fingem ser artesãos, que têm que moldar esse "barro". Vários foram os resultados: uns parece que estão a pedir boleia, outros a andar de bicicleta e há um deles que faz lembrar o Charlot."O objectivo é que, com a biodanza, as crianças sejam mais criativas e afectivas, e não que percebem a intenção que está por detrás de cada movimento", explica Manuela. "Como são muito sensíveis à imaginação, procuro sempre usar metáforas ou inventar histórias quando proponho uma actividade. Em vez de dizer 'agora com o dedo vamos tocar uns nos outros', digo 'imaginem que o vosso dedo é uma borboleta e vai pousar no vosso colega, que é uma flor'."Depois da agitação dos primeiros exercícios, Manuela pergunta se alguém já viu na televisão a imagem de um bebé na barriga da mãe. Joaninha, cinco anos, acena com a cabeça que sim. A facilitadora de biodanza (é assim que se chama a quem dá aulas) pede, então, que se deitem, fechem os olhos e imaginem que são esse bebé. A música é suave, de embalar. E se alguns não conseguem abstrair-se, outros parecem estar noutro mundo. Longe. Quente, como deve ser o útero de uma mãe.Manuela Robert tem 36 anos e é facilitadora de biodanza há três anos. Uma actividade ainda pouco conhecida em Portugal, mas que nasceu há cerca de quatro décadas e foi criada por Rolando Toro, médico, antropólogo e poeta chileno, cuja intenção era, através da dança, induzir "vivências" estimulassem "o desenvolvimento pessoal e a integração do indivíduo", diz no "site" oficial da biodanza (www.biodanza.org).Hoje, com escolas espalhadas por todo o mundo, a biodanza está cada vez mais desenvolvida. Em Portugal, a primeira aula foi dada em 1998, pelo argentino Roberto Mirelman, 51 anos, engenheiro e professor didacta de biodanza (denominação para os que ocupam uma hierarquia superior aos facilitadores). Um ano depois, Roberto Mirelman resolve fundar a Escola de Biodanza de Portugal e inicia um curso de três anos para formar os primeiros facilitadores do país.Definida como um sistema que trabalha o potencial humano a partir de cinco linhas - vitalidade, afectividade, criatividade, transcendência e sexualidade -, a biodanza combina jogos, rituais de grupo e danças tradicionais. E tanto pode ser praticada por crianças como por adultos. Porque, como diz Manuela, "tem várias aplicações e pode estender-se a grupos muito diferenciados". Apesar disso, é junto das crianças e jovens que esta facilitadora sente que o seu trabalho faz mais sentido - actualmente dá aulas a mais de 300 crianças de escolas e instituições de Cascais. Mais do que uma profissão [antes trabalhava no ramo da informática], Manuela encontrou "um outro modo de vida". "Com os mais novos, desenvolvo um trabalho a nível profilático, incentivando-os a não ceder a inibições. É muito gratificante, pois sinto que lhes estou a dar ferramentas para que no futuro sejam pessoas mais realizadas e felizes."O Bairro do Fim do Mundo, a Aldeia SOS e a Prisão Feminina de Tires (Manuela ensina biodanza aos filhos das reclusas) são algumas das instituições onde a facilitadora dá aulas. Uma experiência que classifica como "magnífica e dolorosa": "Nota-se um grande défice de afectividade. Nas primeiras aulas, não conseguem olhar nos olhos uns dos outros e muito menos tocar-se. Às vezes, são até agressivos."E agora? "Cada um tem o seu ritmo, mas depois das seis primeiras aulas já se começam a sentir algumas diferenças. Ficam mais calmos, mais atenciosos." Pára, respira fundo e continua: "Ainda há pouco tempo recebi um texto comovente de uma jovem, que diz que a biodanza mudou a vida dela. E isso vê-se. Quando começou a fazer as aulas era muito retraída e agora está mais solta, não tem complexos, descobriu uma nova sensualidade."Todas as aulas de biodanza têm três fases. Primeiro, fazem-se exercícios mais activos e de integração, como dançar numa roda. Depois, quando os alunos já estão mais à vontade, os facilitadores trabalham o lado afectivo, propondo abraços, carinhos ou momentos mais introspectivos. No final, voltam a activar o grupo com uma roda. "É importante que haja uma dinâmica e que as pessoas trabalhem as suas potencialidades através de diversas formas de conexão", diz Fernanda Reboredo, 53 anos, farmacêutica e facilitadora de biodanza do grupo do Centro de Reformados de São Vicente de Fora, em Lisboa. Aqui, dez mulheres e dois homens, a maioria com mais de 50 anos, reúnem-se todas as segundas-feiras à noite. Nem todos são reformados - há professores, psicoterapeutas, engenheiros. Em comum: dizem-se todos "biodanzantes".A aula é às 20h. O grupo está sentado em cadeiras dispostas num círculo. Falam de chouriços e de pão alentejano. Pelo meio, comentam que Fernanda avisou que ia chegar atrasada. E somam o número de abraços que deram durante a semana. Doze por dia é o "número ideal". Assim que a aula começa, convidam-nos a entrar na roda. "Que ninguém fique a assistir. Para perceber o que é a biodanza, tem de se experimentar", diz Fernanda Reboredo. Dá-se as mãos e, ao som de uma música alegre, dança-se. Sempre de olhos nos olhos, sorrindo. A seguir, Fernanda propõe exercícios a dois, a três, a quatro. É preciso imaginar que alguém é o nosso chocolate preferido e que apetece cheirá-lo, beijá-lo ou mordê-lo..."Um dos grandes desafios é conseguir que as pessoas se toquem e quebrem preconceitos", explica Fernanda Reboredo. "Pode-se tocar o outro sem isso ter uma conotação erótica." Na biodanza, os toques, os abraços e os carinhos não têm tabus. Apenas limites. "Há que preservar o sistema e fazer entender às pessoas que não há qualquer sedução ou 'swing'", diz Nuno Pinto, 32 anos, gestor de conteúdos e facilitador de biodanza há três anos.O grupo do Nuno Pinto é o maior de todos - na quinta-feira à noite, no "Nosso Espaço", em Lisboa, reúnem-se cerca de 25 pessoas, de todas as idades. Há quase tantos homens como mulheres, mas estas continuam a ser a maioria. "É preciso quebrar a ideia de que o homem assumir um lado mais afectivo põe em causa a sua sexualidade."Diana, seis anos, filha do Nunon Pinto, é quem abre a porta. Nada diz. Traz uma Barbie na mão e sorri. Enquanto o pai dá a aula, fica numa sala ao lado a brincar. De vez em quando, espreita. Dança-se ao som de músicas que fazem lembrar o "charleston" dos loucos anos 20. Homens com homens. Mulheres com mulheres. Homens e mulheres."A biodanza acaba com os preconceitos sociais", diz João Fernandes, 37 anos, director de uma multinacional e "biodanzante". "Agora já consigo abraçar um homem da mesma maneira que abraço uma mulher. Tudo é vivido com mais intensidade e poesia." A opinião é partilhada por todos.No próximo fim-de-semana, realiza-se o 1º Encontro Nacional de Biodanza. O evento, que está a ser organizado pelo Nuno Pinto e será numa quinta em Mafra, espera reunir "biodanzantes" de todo o país. "Ainda estamos muito confinados aos grandes centros. As tradições culturais dos meios mais pequenos bloqueiam a chegada de novas propostas."Com uma longa experiência na transformação de diferentes lugares - praias, quintas, livrarias e escolas - em "palcos" de biodanza, o facilitador continua à procura de "espaços com alma". Porque, diz, "a biodanza é a experiência do paraíso".Maria José Jardim, 55 anos, restauradora de documentação, pratica biodanza no grupo de Fernanda Reboredo e diz que a primeira aula foi "um fascínio". "Aqui não tenho de saber dançar para dançar. Apenas tenho de ser eu e de não ter medo de experimentar novas sensações." Já Carlos Reis, 49 anos, organizador de viagens, experimentou biodanza pela primeira vez no Brasil e considera que funciona "como um espelho": "Leva-nos a reflectir sobre a nossa história de vida e o modo como nos colocamos perante diferentes pessoas e situações." Talvez por isso, sejam frequentes os momentos de comoção. Quase todos os que praticam biodanza confessam já ter chorado nas aulas. Nuno Pinto encara essa situação "com naturalidade". "A biodanza é um laboratório de experiências, onde as pessoas se libertam das tensões e resgatam vivências e desejos, como o de serem aceites e amadas. E isso fá-las meditar sobre a sua própria vida", explica este facilitador.O que é mais difícil de desenvolver? "A afectividade, porque as pessoas têm muita dificuldade em tocar, olhar nos olhos ou definir e comunicar limites." A criatividade e a sexualidade são outras áreas que Nuno Pinto considera "muito atrofiadas", mas "mais fáceis de trabalhar", pois "as pessoas assumem mais os bloqueios".Embora reconheça que a biodanza pode ter efeitos terapêuticos, Nuno recusa a ideia de ser uma terapia. "Não pretendemos curar seja o que for. A biodanza rege-se pelo princípio biocêntrico - escutar o corpo e aceitar a vida como ela é." Evitam-se, por esse motivo, as palavras. "O acto de falar pode bloquear o que o corpo precisa expressar. Se houver momentos de comoção, há sempre alguém que se dirige a essa pessoa e a abraça. O grupo tem por base a contenção do outro", diz Nuno Pinto. Que desmistifica: "As pessoas que procuram a biodanza não têm necessariamente depressões. Numa sociedade que faz o culto da morte, são pessoas que têm a coragem de assumir uma vontade de mudança."