A Ferreirinha: Lenda do Douro chega à televisão
A meio do corredor de videiras, apreensiva, a sexagenária interrompe a caminhada. O seu olhar recai sobre as plantações atacadas por uma doença inclemente, a filoxera, que grassa nos terrenos vinícolas da zona da Régua, herdados do pai. A preocupação e os tímidos cabelos brancos moldam-lhe a face.Atrás de Dona Antónia, dois trabalhadores cavam, lentamente, a terra com enxadas. As encostas horizontalmente recortadas do Douro, socalcos que servem de ventre às videiras da região, são o pano de fundo das primeiras cenas desta narrativa. As videiras estão secas e inférteis. Lá em baixo, para lá dos muros de xisto, escondido, o rio serpenteia entre as margens.Antes de a cena começar é apurada a maquilhagem da "Ferreirinha", Dona Antónia Ferreira, uma mulher que ainda hoje é uma lenda do Douro, vestida com roupas pretas de viúva. Jorge Paixão da Costa, realizador da série, indica à actriz Filomena Gonçalves qual o ritmo do seu passeio, as pausas que deve efectuar, e dá pequenas achegas relativamente à expressão e movimentos do seu olhar durante o trajecto definido - cerca de 15 metros. O realizador está sentado num socalco imediatamente superior àquele onde a acção se desenrola. Transmite as primeiras instruções à operadora de câmara: "Tens de vir do nada, e apanhas a Filomena a andar." A actriz dirige-se para o local onde se inicia a cena. A seu lado está uma ajudante que lhe ampara um protector chapéu de sol. O assistente de produção ordena o silêncio geral e dá luz verde para o início da acção. A câmara de filmagem principal está colocada numa grua, podendo ser movida horizontal e verticalmente pela operadora. Em baixo, à altura da actriz, está instalada uma câmara fixa que permite ao realizador ter duas perspectivas do que foi filmado.Durante o "take", e numa cena em que não há diálogos entre actores, Jorge Paixão da Costa vai dando instruções à operadora de câmara sobre o posicionamento e movimento da câmara colocada na grua.Ao cabo de algumas tentativas, o realizador detecta um problema: "Fica menos tempo parada por causa dos arames [que servem de apoio ao crescimento das videiras e dividem o terreno cultivado]", recomenda a Filomena Gonçalves. "Por isso é que eu quero que a captação da imagem seja picada", concretiza, dirigindo-se agora para a operadora de câmara. No final dos "takes", realizador, operadora de câmara e a actriz fazem uma avaliação rápida do filme produzido. "Quando chegares ao fim [da caminhada], olha para a terra, para eu acabar a cena a filmar uma videira. Não quero terminar como nas outras cenas, em que acabei com a tua cara", diz Paixão da Costa à actriz. Lança um olhar cúmplice à operadora e a directiva é posta em prática. Volta a refugiar a cabeça debaixo de um pano preto que lhe permite acompanhar as cenas num ecrã, sem ser incomodado pela forte luz solar. Parece um fotógrafo do início do século XX."Ainda hoje as pessoas se identificam" com elaAs filmagens da série A Ferreirinha iniciaram-se no passado dia 8 de Março e vão contar ao telespectador histórias baseadas na vida de Dona Antónia Ferreira, cujas atitudes e valores fizeram dela uma feminista filantrópica da segunda metade do século XIX português."Apesar da sua eficiência e determinação no mundo dos negócios, nunca perdeu as suas raízes, o seu carinho pela sua terra, pelo Douro", diz Filomena Gonçalves. "Ainda hoje as pessoas se identificam muito com a 'Ferreirinha'. Ela é uma lenda que serve de exemplo para as gentes do Douro." Catarina Furtado, que faz o papel de Ana Plácido, diz sentir-se "privilegiada por participar nesta série de ficção baseada na nossa história", referindo que se tem documentado com material que lhe permita compreender melhor a época em que a acção se desenrola e a personagem que encarna.Francisco Moita Flores, que depois do Processo dos Távoras volta a ser autor de uma série de ficção da RTP, refere que foi Filomena Gonçalves, a sua esposa, que "descobriu e agora deu corpo à Ferreirinha". Relativamente à mulher cujo nome deu o título à série, defende que "foi ela que teve a lucidez no século XIX para salvar o vinho do Porto e dotá-lo da qualidade que ele hoje tem".O subdirector de programas da RTP, Nuno Santos, revela que "esta é uma série para passar no horário nobre do canal 1", em meados de Setembro. E destaca o facto de esta co-produção RTP/Antinomia se inserir numa aposta estratégica da estação em "programas de ficção nacional, documentários e programação infantil".A conclusão das filmagens está prevista para Julho. No final do oitavo "take", Jorge Paixão da Costa confessa ainda sentir uma "desfocagem nas duas câmaras". O assistente de produção grita, pela enésima vez: "Silêncio!" A "Ferreirinha" inicia novamente a caminhada pela vinha.