"Prefiro ser um patinho feio que depois se transforma num cisne!"
Foi menino de coro da Capela Sistina, na adolescência tocava rock na guitarra eléctrica e começou a sua carreira profissional como contrabaixista numa orquestra sinfónica. Até que um dia decidiu tornar-se cantor lírico, não porque essa fosse a sua última meta, mas porque achou que era uma boa maneira de ficar famoso e abrir caminho para o seu grande sonho - ser director de orquestra! -, que pensa concretizar em 2007, quando abandonar os palcos de ópera. O tenor Giuseppe Sabbatini já cantou mais de 50 papéis nos maiores teatros de ópera do mundo. O seu preferido, e o que interpretou mais vezes, é o Werther, da ópera homónima de Jules Massenet, baseada no célebre romance de Goethe, que esta noite se estreia no Teatro de São Carlos, com encenação de Graham Vick e direcção musical de Alain Guingal.GIUSEPPE SABBATINI - A música esplêndida de Massenet e a evolução psicológica da personagem. Já todos tivemos algum desgosto amoroso na vida e fomos obrigados a resolvê-lo de um modo diferente de Werther, felizmente! [risos]. Mas nos finais do século XVIII não era assim, muitos jovens se suicidavam. Sempre vivi este papel de um modo muito intenso, às vezes chegava a sentir-me mal, mas com o tempo consegui criar alguma distância. Vejo este rapaz sensível mais distante de mim, mas defendo-o e tento propô-lo ao público do modo mais natural possível, ainda que a minha face e o meu físico não correspondam ao seu aspecto original. Werther era um rapazinho magro e pálido, o pobrezinho desfalecia de amor. Mas se eu corto a barba fico com uma cara redonda, pareço um fresco de Giotto! Por isso prefiro fazer o Werther com barba, deslocando a personagem dos finais do século XVIII para o início do século XIX, para um ambiente "Sturm und Drang", o que implica dar-lhe um pouco mais de romantismo e ímpeto. A encenação de Graham Vick está de acordo com essa perspectiva?É a primeira vez que participo numa encenação moderna do "Werther". A acção foi transposta para os anos 50, depois da II Guerra Mundial. O problema do amor é eterno. Basta encontrar com inteligência e sensibilidade os pontos de união da história. A personagem é perfeitamente credível neste contexto. Graham Vick teve uma ideia interessante para o final, que corresponde a um afastamento da tradição, quer do romance de Goethe, quer da partitura. Quem teve um grande desgosto amoroso, quer tenha sido vítima ou "carrasco", se não morre vai recordar-se para sempre... mas prefiro não dizer mais nada e deixar a surpresa.O Werther é um papel vocalmente muito exigente?Para mim não é tão exigente porque é um dos meus papéis preferidos e porque já cantei as obras para tenor mais difíceis do repertório. Tecnicamente não é dos piores, mas é muito difícil ao nível interpretativo. Massenet pertence a um período histórico, no qual se escrevia tudo na partitura. Tudo deve ser respeitado, mas não chega. A música escreve-se com símbolos, mas estes são muito limitados no que diz respeito aos sentimentos, às sensações, à experiência de vida. É preciso dar um significado a todos esses sinais. Se o compositor escreveu a dinâmica "piano" precisamos de saber que tipo de "piano" é. Um exemplo: "La gelida manina", em "La Bohéme", de Puccini, é para ser cantada "piano", a morte Werther também. Mas quando sussuro ao ouvido de uma mulher "Che gelida manina" é uma coisa, quando morro é outra. Em ambos os casos o compositor escreve um "p", mas é preciso encontrar uma cor vocal, uma intenção completamente diferente.Como prepara um novo papel?A primeira coisa é ler o texto, se existe um romance como no caso do Werther começo por aí. A seguir vejo como o libretista fez o trabalho de redução para a ópera e só depois começo a estudar a partitura. Tento também fazer um trabalho de contextualização, conhecer a pintura, a escultura ou a literatura daquele período, encontrar o máximo de informação sobre aquela obra e aquele papel. Claro que antes disto há que ter uma técnica segura. A interpretação não se pode basear nos limites técnicos do cantor. O problema é que 95 por cento dos músicos interpretam com os seus limites, depois há uns três por cento que têm a técnica perfeita para fazer o que está escrito, mas têm pouca entrega emocional ou pouca inteligência. Os outros dois por cento, entre os quais humildemente me incluo, até podem não ter uma voz bela - e eu não tenho uma voz bela, assim me dizem em Itália -, mas a técnica é segura e qualquer coisa funciona aqui e aqui [aponta a cabeça e o coração]. Creio estar em boa companhia e não é falta de modéstia. A Callas tinha uma bela voz? Não, era mais bela a da Tebaldi, mas que diferença de interpretação. Tenho muitos colegas com vozes maravilhosas, cujas interpretações não me tocam. Prefiro ser um patinho feio que depois se transforma em cisne! Talvez ainda não seja um cisne, mas quem sabe um dia...Como começou a cantar? Quando tinha oito anos tive de escolher entre o judo e o canto. Escolhi o canto, pertenci ao coro da Capela Sistina até mudar a voz. Depois comecei a tocar rock, com a guitarra eléctrica, e entrei para o conservatório aos 16 anos para estudar contrabaixo, mas com o fim de me dedicar ao jazz e ao rock. Pouco a pouco a música clássica conquistou-se. Acabou o curso em 1980 e tornei-me primeiro contrabaixo da Arena de Verona, toquei também no La Fenice e estive sete anos na Sinfónica da RAI. O canto surgiu porque sempre quis ser maestro. Mas um contrabaixista desconhecido, sem poder político, religioso ou económico, pode ter uma orquestra para dirigir? Não! Tinha de encontrar outro modo para me tornar famoso. A voz funcionava bem e decidi estudar canto. Encontrei uma óptima professora em Roma e dois anos e meio depois estreei-me. Foi tudo muito rápido, comecei a estudar canto aos 28 anos. Os principais concursos tinham o limite de idade de 30 anos mas tentei e obtive sempre algum prémio. Alguns não eram prémios monetários, mas a possibilidade de participar numa ópera. Fiz este percurso e decidi que em 2007, quando fizer 20 anos de carreira, deixarei os palcos de ópera (talvez continue com recitais e oratórias).Pretende dirigir ópera ou prefere o repertório sinfónico?Espero poder parar com a ópera, preciso de arejar a cabeça, os cantores são uma raça terrível! Gostaria de fazer música sinfónica, mas se não for possível dirigirei um pouco de ópera. Tenho colegas que gostariam de trabalhar comigo mas a forma como se preparam as coisas actualmente desagrada-me. Há cada vez menos ensaios, os cantores chegam atrasados, não trabalham. Faz-se uma colagem, ajusta-se qualquer coisa, mas não há uma linha única interpretativa. Se conseguir boas condições de trabalho óptimo, se não desisto e vou para a Jamaica, para Porto Rico, para Cuba, sei lá... passo o resto da vida a repousar!Não lhe custará deixar a ópera?Quero acabar em boa forma vocal, íntegro! Não gosto daqueles que começam a descer e não sabem parar. Quero que digam de mim "este homem podia continuar mas não quis" e não "já não se pode ouvir, porque não desiste?" Vinte anos de carreira a um certo nível serão suficientes para deixar uma boa recordação. "Werther", de MassenetGiuseppe Sabbatini, Monica Bacelli, Jorge Vaz de Carvalho, Jérôme Varnier, Hélène Le Corre, Carlos Guilherme, Luís Rodrigues e outros (cantores), Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro de São Carlos, Graham Vick (encenação), Alain Guingal (direcção musical)LISBOA Teatro Nacional de São Carlos, hoje às 20h (repete nos dia 3, 4, 7 e 10).