Para os incondicionais de John Woo, que os houve e muitos, longe dos condicionalismos da indústria de Hong-Kong o cineasta terá perdido força: não faltam os que vêem na sua inteira aventura hollywoodiana uma sucessão de cedências mais ou menos graves, abdicando do tom negro dos filmes maiores para adoptar um "pronto-a-filmar", em que os tiques de realização já não se coadunariam com o conjunto das ideias veiculadas. Estranhamente, "Broken Arrow" (1996), arrasado por uma boa parte da crítica aquando da estreia, aparece agora como objecto ainda recuperável dentro de um processo de inexorável decadência. E cometem-se inexplicáveis injustiças ao descartar uma obra-prima como "Face-Off" (1997) ou mesmo o divertidíssimo "pastiche" que é "Missão Impossível 2" (2000).
O que avulta nesta rejeição crítica do "virtuosismo vazio" de John Woo é uma espécie de fundamentalismo passadista, apenas interessado na "época de ouro" de um cineasta "migrante" e "aculturado". Salvaguardadas as devidas (e enormes) distâncias, aconteceu o mesmo no passado com Fritz Lang, cuja obra americana foi durante muito tempo considerada como cedência à indústria, traição à matriz ética e estética do pós-expressionismo e outros dislates do mesmo teor.
ópera semi-futurista."Pago Para Esquecer" é uma hábil adaptação de um conto, por um artesão pouco imaginativo, Dean Georgari, responsável, por exemplo, pelas aventuras nada estimulantes de Lara Croft. Portanto, quem esperar por ecos de Kafka, filtrados a partir da complexa visão do humano de Philip K. Dick, desiluda-se. Mantém-se, no entanto, uma das características fundamentais do seu estilo, um humor negro e corrosivo, que contamina todos os interstícios da teia narrativa.
O argumento pode resumir-se a muito simples linhas: um engenheiro de sucesso é contratado por uma soma fabulosa para, durante três anos, conceber um programa que lhe permita antever o futuro, vendo em seguida apagada toda a sua memória do processo. Só que, ao prever as dificuldades com que virá a debater-se, reúne, num "minimal" envelope de papel, os "gadgets" que irão servir-lhe para superar as dificuldades. Trata-se de uma artificiosa revisitação aos trabalhos de Hércules no âmbito paródico de uma "ópera semi-futurista".
Assim colocada a questão, parece claro que a solução visual para semelhante repto só poderia passar por assumir o filme como um gigantesco divertimento, como uma espécie de jogo em que tudo funcionasse com a precisão de um mecanismo de relógio. E aqui intervém a inteligente chave que Woo forja para a ficção: nunca abdicando do seu estilo reconhecível - vertiginosos "travellings", montagem sincopada e musical, personagens com a transparência de bonecos animados por lampejos de inteligência resistente, um grafismo rigoroso e tenso -, opta por alongar a acção, multiplicar os obstáculos e dar a aparência de um descuidado e frágil "puzzle" que se vai construindo perante os nossos olhos.
Aquilo que muitos apelidaram de preguiçoso e automático exercício de estilo, acaba por fazer dos bonecos de Jennings (Ben Affleck, nem melhor nem pior do que de costume, instituído de um humor que o ultrapassa e lhe "destrói" a "persona" cinematográfica) e da Dra. Rachel Porter (uma Uma Thurman pouco à vontade na sua pele), dois curiosos esboços da desmontagem da própria estratégia imposta do filme-de-acção.
Para quem queria a fidelidade (pretensiosa como em "Memento", muitas vezes citado como contraponto "inteligente") a um género ou a uma crença nos seus mecanismos de representação, John Woo opõe as armas da irrisão, o desconchavo do ritmo fílmico como fim em si, o enredo como suporte mínimo para a exposição de fortíssimas ideias visuais. Em vez de nos recordarmos de pormenores da história, ficam-nos na retina cores ou "inserts", fragmentos de memórias fílmicas, com Hitchcock, a sua "Intriga Internacional" (também tão atacado por alguns, quando estreou, como "vazio" exercício de estilo) e os seus "love birds" (o lado "kitsch" do uso dos pássaros, enquanto símbolo do amor e como motor de resgate, funciona na perfeição no contexto da anulação dos valores tidos por seguros) como resquícios de uma desconstrução por absurdo.
Obra-prima a colocar ao lado da súmula estilística de Hitchcock? Nem por sombras. "Pago Para Esquecer" revela fraquezas, por exemplo no modo como articula a acção principal da fuga do herói com a "sub-acção" do FBI. Descuida algumas fulcrais personagens secundárias, como a de Rethrick (um neutro e "inútil" Aaron Eckhart), falhando assim a criação de um "vilão" credível ou o seu simulacro.
No entanto, num tempo em que a maioria dos objectos industriais se limitam a ilustração com a câmara de requentadas receitas, não será de saudar, para além de todas as limitações, um filme que prende, diverte e apaixona, por meio de ideias exclusivamente cinematográficas?
Não haverá neste delirante simulacro de um filme-de-acção suficiente matéria fílmica para, inclusive, questionar a sua sobrevivência como género? Bastaria a fabulosa sequência do encontro de Affleck com o "duplo" de Thurman e a subsequente fuga pelas ruas da cidade para justificar uma visita atenta a esta aventura, sem outro objectivo que o da sua própria construção em imagens. Cinema não será também este "vazio" preenchido de ruínas? A nossa recompensa ("paycheck", título original do filme) está sempre em sabermos (querermos?) ver para além das evidências.