Naturalmente, ilumina-se

Há relatos de visitantes do Metropolitan, em Nova Iorque, à procura de um retrato que até está num museu em Haia, na Holanda. O quadro? "Rapariga com Brinco de Pérola", que era a imagem que Tracy Chevalier tinha pendurada no quarto desde os seus 19 anos e que há uns anos a levou a interrogar-se sobre a identidade daquele rosto feminino - e a escrever um romance. Foi assim que um quadro deu origem a um livro, com Chevalier a arrancar aquele rosto do anonimato sob a forma de uma biografia ficcionada de uma criada que talvez nunca tenha existido, que talvez nunca tenha furado a orelha para posar para Vermeer.

Para o caso, o que interessa é que o livro deu origem a um filme, a primeira longa-metragem de ficção do britânico Peter Webber, que, discretamente, tem produzido um pequeno efeito de bola-de-neve: ajuda que o director de fotografia, o português Eduardo Serra, esteja na corrida para os Óscares. Mas mesmo antes dos Óscares, já era dele, Serra, que se falava, de como iluminou um filme. É raro um director de fotografia concentrar tantas atenções sobre o seu trabalho, é raro um filme tornar tão consciente e inescapável a luz que tem dentro: ajuda que, em termos de visual, "Rapariga com Brinco de Pérola" evoque o universo pictórico de Vermeer, tido como "o pintor da luz".

Como explica Eduardo Serra: "Os outros pintores da época tratavam mais da relação entre a luz e um rosto, ou entre a luz e um espaço, enquanto Vermeer é aquele que especificamente pinta a luz. Em muitos dos quadros dele, a luz é o actor principal."

É por aqui, pelo vibrante estudo de luz que faz das suas pinturas uma rigorosa e detalhada encenação de superfícies, reflexos e transparências, que se poderá explicar o fascínio actual por Vermeer. Mas não será só isso. "Imaginemos uma cena, um plano, e aquilo que se corta antes e depois para aproveitar o momento importante da cena: isso são os quadros de Vermeer", afirma Serra. "Nunca há uma acção real, parece que às vezes são momentos fora de campo, quase os restos da cena. Em oposição à pose ou ao momento importante, nele parece que só contam os momentos sem importância."

É também um aviso a quem entrar em "Rapariga com Brinco de Pérola", discretíssima narração de "uma coisa que nunca acontece", como resume Serra, "uma virtualidade". Dizendo aquilo que o filme não diz, mas sugere: é a história de como um pintor reencontra o desejo numa rapariga. Quando ela, Griet (Scarlett Johansson), entra em casa dos Vermeer para os servir, ele é um pintor em crise de inspiração. Griet é encarregada de limpar o estúdio de Vermeer (Colin Firth), espaço sagrado onde a mulher dele jurou um dia nunca mais pôr os pés. O pintor surpreende a criada a limpar as janelas ("Tenho medo que altere a luz da sala", diz ela) e o que vê é um quadro. É o primeiro encontro entre os dois, que a partir daí estabelecem uma cumplicidade solitária, à margem dos restantes elementos da casa. Há um estender de mãos que mal se tocam - e a explosão de ciúmes da mulher do pintor. E há Griet a sangrar da orelha para usar o brinco com que posará para um retrato que, à época (estamos no século XVII), é explicitamente sexual...

enrolar a luz.

Como preparação para o filme, Eduardo Serra andou pelos museus. "Fui rever uns Vermeer - os do Louvre, os de Londres, os de Haia e os de Amesterdão -, ainda dei um bocadinho a volta. É verdade que há sempre umas diferenças, coisas que não se vêem nas reproduções, aquele aspecto um bocado desfocado dos seus quadros, as diferentes colorações e até a história do brinco." (A história do brinco: Serra é dos que defendem que não é uma pérola, mas um pendente de metal, com o reflexo de uma janela).

Não é a primeira vez que o director de fotografia se rodeia de pintura para trabalhar a luz de um filme: para "What dreams may come" (1997), de Vincent Ward, escolheu os pintores paisagistas da costa leste americana. É o que ele chama "um trabalho de impregnação", para o qual também pode convocar fotografia ou, como quando trabalhou para M. Night Shyamalan, BD. "Para 'O Protegido', mergulhei no universo da banda desenhada, especialmente a americana, que descobri, não conhecia nada."

No caso de "Rapariga com Brinco de Pérola", não foi só Vermeer - será legítimo pensar em Georges La Tour, pela iluminação através de velas, e Rembrandt. "É evidente que mergulhei bastante na pintura clássica para ver como eles fizeram reagir a luz em relação aos rostos, essencialmente." Por falar em rostos: vê-se no filme como a luz faz da palidez de Scarlett Johansson (aqui, em nova prova de meritório "understatement") uma superfície reflectora. A isto, Serra chama "enrolar a luz à volta de um rosto" - "que é o que eu gosto de fazer".

Para o director de fotografia, era "obrigatório tentar ao máximo uma identificação" com Vermeer, "mas também era importante não deixar a referência pictórica 'comer' o filme inteiro". Dito de outro modo, se há óbvias citações da pintura de Vermeer, momentos em que esta se dá a ver através de "quadros vivos", como uma ilusão óptica que, subitamente, lhe confere tridimensionalidade, também era essencial autonomizar o "look" do filme. Desde logo, a fotografia intervém, como elemento dramático, na construção do filme: o percurso de Griet é feito da escuridão para a claridade - antes do seu encontro com Vermeer, no estúdio dele, onde a luz é total, imensa, Griet surge-nos rodeada de penumbra. Mesmo no interior da casa dos Vermeer, Griet é alguém que ascende do fundo cavernoso, do escuro da cave onde as criadas habitam, para a luz - cada espaço foi iluminado de forma diferente, o que confere uma certa verticalidade ao "décor".

Serra diz que o filme lhe permitiu "uma demonstração interessante": a sua abordagem naturalista é a mesma que teria seguido num filme contemporâneo, "com a mesma história e o mesmo espaço". "Não fiz senão o que faço normalmente, utilizando a minha técnica de iluminação habitual. Tenho este princípio de respeitar as direcções de luz natural, mesmo que seja um natural fabricado: quando há janelas, a luz vem das janelas. Não ilumino independentemente da arquitectura. O meu ponto de partida é sempre fazer uma luz que possa ser identificada como a luz natural da situação ou do lugar."

"no guns". Antes de "Rapariga com Brinco de Pérola", Eduardo Serra já tinha sido a maior esperança de um português conquistar um Óscar da Academia de Hollywood, em 1998, com "As Asas do Amor" - que lhe valeu um Bafta, prémio da indústria de cinema britânico, para o qual volta, agora, a estar nomeado. Ambos são filmes de época: há algo em particular nesse género que evidencia mais a fotografia? "É óbvio que o guarda-roupa e o 'décor' ajudam - neste filme, também estão nomeados [para os Óscares]. Mas espero que não me proponham só filmes de época", ri-se, "também queria fazer qualquer coisa completamente diferente, urbano, nocturno, 'trash'." "Trash?", hesita-se. "Há coisas interessantíssimas, urbanas e feias, apetece-me trabalhar a luz em situações menos românticas."

Serra tem trabalhado sobretudo no circuito do cinema europeu e, ocasionalmente, no cinema americano: acaba de rodar, com Kevin Spacey, em Berlim, o "biopic" do cantor dos anos 50, Bobby Darin, "Beyond the Sea". Um Óscar permitir-lhe-ia, talvez, uma inversão de lógica? "Podia estar mais integrado no sistema de Hollywood, eu é que sempre recusei porque só me interessa fazer filmes que eu gostaria de ver. Há um lema que uso às vezes: 'no guns, no stunts, no sequels'. Portanto, isso já me afasta de muito do cinema americano. É um pouco deliberado."
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