Costumes antiquíssimos perduram nos rituais da morte em Portugal
Fotos dos dois cemitérios pedidas quarta-feira ao Adriano Miranda. No server Local está uma foto (DR) - Tumba.jpg - que deve ser usada com a seguinte legenda: "Adquirir sepultura antes da morte, um costume já referido na Bíblia"Os dois primeiros cemitérios públicos de Lisboa - Alto de S. João e Prazeres - serviram de base a um estudo universitário, publicado pela Universidade do País Basco, que mostra como a nossa relação com a morte pouco mudou nos últimos três mil anos."Estética da Morte em Portugal", tese de doutoramento do docente português António Delgado, editada em Espanha há pouco mais de um mês e que aguarda publicação em português, resulta de um trabalho de quatro anos (de 1996 a 2000) e mostra, como diz o autor, que "a nossa cultura vive muito da ideia da morte". "Vivemos muito no passado. Na ideia de uma época dourada perdida. Os portugueses são um povo que não se assume no presente, para quem só a geração anterior é que foi boa. Portugal é um dos raros países europeus onde isso acontece", afirmou ao PÚBLICO este professor de História de Arte e História da Moda da Universidade da Beira Interior. "É impensável, por exemplo, ver Aznar, ou qualquer outro político europeu, dizer o que se disse publicamente em Portugal relativamente à Expo 98 ou ao Euro 2004, a afirmação, como que espantada, de que conseguimos realizar tais iniciativas tal como os outros, como se isso não estivesse ao alcance da geração presente". Outro exemplo desse travão inibidor é a força que ainda têm no país as figuras da "religião cívica" vigente que transferiu o culto dos mortos privados para o culto comemorativo de santos e heróis. Camões, Afonso Henriques ou Eça de Queirós são exemplos que cita. Dos heróis clássicos passou-se aos santos da Igreja e destes aos "gurús" da religião do poder de Estado, que hoje proliferam e se repetem, esculpidos em pedra nos espaços públicos urbanos. "Antropologicamente, a estátua é um altar, onde uma pianha de pedra afasta a figura do chão profano. É uma forma do Estado catequizar". A estranha ligação dos vivos com a morte "é um dos aspectos mais primitivos da nossa sociedade", nota o investigador. Provam-no rituais imutáveis desde os templos bíblicos. Quem, ao passar um enterro, olhar para o carro da agência funerária com a sua montra de vidro vê algo semelhante ao que via um egípcio do tempo dos faraós na coberta do barco dos mortos onde seguia um corpo mumificado. Práticas contemporâneas como a de adquirir em vida a campa ou monumento fúnebre já são descritas no Antigo Testamento. Absalão, filho de David que em Hebron se autoproclamou rei de Israel, mandou fazer a sua sepultura em vida (em Jerusalém há um túmulo com o seu nome, mas da época de Herodes). "Isso acontece quando alguém teme não ser recordado, mesmo que tenha descendência, provavelmente mais interessada em heranças do que na memória dos antepassados. É uma situação frequente nos meios rurais", diz o autor."Embora estejamos numa cultura ocidental, também não há grandes diferenças relativamente à cultuação islâmica dos mortos. É o caso da mulher, que é a primeira a ser atingida pelo culto da morte. A mulher, presente na estatuária fúnebre como adorno secundário, sofre um luto castigador. Ela venera o marido, ela chora para a família do marido. Isso pode ver-se em figuras do Alto de S. João ou dos Prazeres. Ainda hoje, em Novembro [no dia dos Fiéis Defuntos] são as mulheres que vão aos cemitérios. Falei com algumas delas, mas era muito complicado... . Ouvi uma viúva elogiar um produto que lhe tinham recomendado para limpar os ossos do marido: 'Fica tão branquinho!', dizia", recorda António Delgado. Para as mulheres, o cemitério é local de práticas intimistas, mas não só, já que é também zona de exibição. "Por vezes, parece que há concursos de campas, sobretudo fora das cidades. Na Pederneira (Nazaré), por exemplo, as mulheres dispõem sobre os túmulos naperons com jarros de flores em volta. É quase bonito", refere.Durante séculos a viuvez feminina era um destino terrível, o desastre económico e social e por vezes ainda o é", prossegue o autor desta tese de doutoramento. Na Idade Média - lê-se neste trabalho - as viúvas "eram obrigadas a viver da mendicidade e em lugares solitários, longe das pessoas, numa sociedade muito pouco caritativa. Estas pobres mulheres foram uma presa fácil para a Inquisição (...), acusadas de buxaria, por serem depositárias, na maior parte dos casos, de um saber oral de medicina empírica". Para a viúva jovem, durante muito tempo a Igreja impunha mais que um castigo, tornando-a objecto de "um assassinato simbólico" ao impedi-la de voltar a casar ou de dispor do seu corpo."Os mortos têm um grande poder sobre os vivos, sobretudo as mulheres", resume.