O quotidiano no campo de concentração de Salazar
Quando, a 29 de Outubro de 1936, o paquete "Luanda" larga os 152 presos políticos no lugar da Achada Grande, no norte da na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, a noventa quilómetros da cidade da Praia, o Campo do Tarrafal era apenas um lugar com 200 por 150 metros, cercado por uma barreira de arame farpado. Os presos foram distribuídos, em grupos de doze ou treze, por doze barracas de lona, onde viveram dois anos, até que estas se desfizeram de rotas.Nesses primeiros tempos a casa-de-banho era quatro paredes sem telhado que tapavam cinco buracos no chão com cinco latas dentro. Do outro lado do campo, três paredes e um telhado, formando um telheiro, era o espaço destinado à cozinha. Ao ar livre, umas mesas eram o refeitório - mesas que, aliás, serão invariavelmente usadas como material para fazer os caixões.É nessas condições físicas e sob o clima inclemente da Ilha de Santiago que os primeiros presos vão viver o seu embate com o campo, um choque agravado com o regime concentracionário e brutal imposto pelas ordens do primeiro director do campo, Manuel dos Reis, mas que se seguirá com outros directores até ao fim da II Guerra Mundial. Os castigos físicos, a tortura, a má alimentação, a subnutrição, a falta de medicamentação e de assistência médica foram as armas reais que castigaram os presos, quase todos com doenças crónicas e 32 mesmo com a morte. O castigo arbitrário era um facto quotidiano, aplicado pelos guardas, todos funcionários da PVDE, e acolitados por um batalhão de guardas angolanos. Logo de início, o primeiro director, Manuel dos Reis, ameaçava pôr os presos num círculo de arame ao relento e ao sol, daí lhe advindo a alcunha de "Manuel dos Arames", mas então o castigo da solitária era aplicado na prisão da vila, a pão e água. Não havia ainda "frigideira", construída no fim do consulado de Manuel dos Reis, em 1937. Foi estreada pelos dezassete acusados da primeira tentativa de fuga, depois de três deles terem sido brutalmente espancados, Júlio Fogaça, José Soares e Henrique Ochsemberg. Este último, já em liberdade e anos depois, descobria que tinha uma lesão irreversível na cervical.Após a primeira tentativa de fuga - são conhecidas pelo menos quatro tentativas - viveu-se o chamado "período agudo". Em Agosto de 1937 começou a construção, com trabalho forçado dos presos, da vala à volta do campo, com três metros de largura, acompanhando o arame farpado e sendo completada com um talude de terra onde estavam instaladas as guaritas.Logo no arranque dos trabalhos o paludismo já atacara os presos, que viviam nas tendas sem mosqueteiros, estando o campo instalado num local repleto de mosquitos transmissores da doença. A situação foi de tal modo grave que os trabalhos da vala foram suspensos, pois apenas menos de dez presos se mantinham de pé em consequência do paludismo e das febres intestinais sem tratamento. Por fim, quando já tinham morrido seis homens e perante a insistência da companhia de soldados angolanos, o director deixa entrar no campo um garrafão de cinco litros de quinino. São então também distribuídos os mosqueteiros, que ao longo dos anos seriam várias vezes retirados como castigo.Tudo isto acontecia apesar de o campo ter médico desde 1937: Esmeraldo Pais Pratas, com alcunha de o "Tralheira", que só no fim da II Guerra Mundial deixou Cabo Verde. Pais Prata é mesmo apontado como um dos principais responsáveis das arbitrariedades, atrocidades e mortes. Não via os presos e não os medicava e dizia abertamente estar ali para passar certidões de óbito. Em entrevista a Maria Antónia Palla, em 1978, quando da cerimónia de transladação dos mortos do Tarrafal, Francisco Miguel afirma: "Esmeraldo Pais Prata, um autêntico assassino, que foi médico do campo dizia que o maior prazer que tinha era passar certidões de óbito."O acompanhamento médico é assim inexistente. Presos como Virgílio de Sousa e Tomás Aquino e, a partir de 1941, o médico, também preso Manuel Baptista dos Reis procuram minorar a situação sem meios.Dois anos passados, os presos mudaram-se para os pavilhões de alvenaria. Seguiu-se a construção, já pelo trabalho forçado dos presos, do posto médico, que funcionava como casa mortuária, da parede da frente fechando a cozinha e do anexo que funcionava como talho e salsicharia. Assim como das oficinas.As condições sanitárias do campo eram péssimas e total a insalubridade. Os dejectos nos primeiros dois anos eram despejados pelos presos no mar e só depois construída uma fossa. A água vinha do poço do Chão Bom, a 700 metros do campo, mas era salobra. O seu transporte inicialmente era feito por nativos, mas rapidamente passou a ser feita pelos presos.Primeiro, em braços, com toros e latas, depois bidões, quando o segundo director do campo comprou um carro puxado por um boi. Por fim, usando o caminho-de-ferro que foi construído para transporte de pedras e mercadorias. A água vinha então nas zorras, empurradas por presos e transportavam bidões de 200 litros. A água era assim muito racionada. Os presos tomavam banho com um litro apenas. E, no início, filtravam-na e ferviam-na às escondidas dos guardas.Já as encomendas das famílias eram controladas logo pelo primeiro director que roubava os produtos, vendendo-os depois aos presos, desde conservas a papel. O dinheiro enviado pelos familiares, necessário para pagar quase tudo o que consumiam, era também retido. O primeiro director introduziu uma prática que perdurou até ao fim: o dinheiro ficava em conta-corrente na secretaria e os presos usavam umas cédulas do campo que nada valiam fora.Os livros, esses, foram todos apreendidos e só escaparam os poucos que os presos esconderam. A correspondência era também apreendida e censurada.Com o interinato do segundo director, José Júlio Silva,entre 17 de Novembro de 1937 e 20 de Outubro de 1938, a situação melhora ligeiramente. Começaram a poder escrever e receber correio e encomendas. Passaram também a poder cozinhar, mas o regime alimentar à base de arroz, vindo da Guiné, raramente melhorou, o peixe era quase sempre albacora e a carne era muitas vezes de rezes doentes. O pão era considerado o melhor alimento fornecido pela direcção. É comprado o carro com um boi para a água. Alguns livros são devolvidos. É neste período que os presos passam para os pavilhões de pedra e abre o posto médico e casa mortuária conhecido como a Mitra, abrem também as oficinas.Mas com o terceiro director, João da Silva, entre Outubro de 1938 e Junho de 1940 as proibições voltaram, mais rígidas. As encomendas e a correspondência foram de novo apreendidas. A comida piorou em qualidade e diminuiu em quantidade. E foi criada a "Brigada Brava", uma forma de trabalhos forçados para presos doentes, os quais só bebiam água e urinavam com autorização dos guardas e cavavam o dia todo. Durou 45 dias. Acabou porque só dois homens se mantinham de pé. Esta foi a forma máxima de trabalho forçado, que, todavia, existiu sempre durante os primeiros oito anos.O regime de terror é aligeirado no mandato de Olegário Antunes, de Junho de 1940 a Janeiro de 1943. É nesta fase que, por exemplo, foi construída, sob direcção de Bento Gonçalves, a central de gelo, para servir a ilha. Com Olegário Antunes as rezes doentes passaram a ser deitadas ao mar e deixaram de ser comidas. Os livros não só foram devolvidos, como os presos puderam organizar uma biblioteca de 700 volumes - Alberto Araújo foi o primeiro bibliotecário. Estas regalias mantêm- se praticamente todas com o director seguinte, Filipe Barros, que esteve no Tarrafal entre 1943 e 1945, mas a comida volta a piorar. Porém, a partir de 1944 podem começar a receber e ler jornais.Apesar de tudo, a actividade política e intelectual dentro do campo nunca parou. Os presos organizaram-se em grupos de acordo com as suas ideias políticas que enquadravam politicamente e promoviam a educação mútua. De um lado os republicanos, de outro, os anarco-sindicalistas com a Organização Libertária Prisional (OLP) e também o PCP, com a Organização Comunista Prisional do Tarrafal (OCPT). Depois da ruptura com o PCP protagonizada por José de Sousa, líder das Juventudes Comunistas e dirigente da Confederação Inter-Sindical, passou a existir o Agrupamento dos Comunistas Afastados (ACA).A importância da actividade e produção política dentro do campo foi sempre grande, ou não estivesse aqui presa a elite da oposição. É no Tarrafal que, no início da II Guerra Mundial, Bento Gonçalves defendeu a "Política Nova" e escreve o livro "Duas Palavras". E que, no fim da mesma guerra, Júlio Fogaça e Alberto Araújo defenderam a "Política de Transição", com que disputam o Congresso do PCP de 1946.O fim da arbitrariedade e da brutalidade vêm em 1945, quando toma posse o último director do campo, Prates da Silva. Acabam os trabalhos forçados e os presos até têm direito a ouvir rádio. É nessa fase do pós-guerra que, em 1949, Salazar autoriza a visita a Cabo Verde e ao Tarrafal dos pais de Guilherme da Costa Carvalho, membro do Comité Central do PCP. Herculana Carvalho e Luís Alves Carvalho, primeiro corretor da Bolsa do Porto e figura influente, viajam de paquete, levam alimentos e bens. O campo vive uns dias de festa e no regresso Herculana Carvalho viaja pelo país a distribuir fotos dos presos e notícias pelos seus familiares. Um período que contrasta com os anos de chumbo vividos antes e que levaram Edmundo Pedro, que passou dez anos no "Campo da Morte Lenta", a afirmar ao "Correio da Manhã", em 27 de Abril de 2003: "Quando ouço hoje alguns historiadores de televisão falar na lenda do Tarrafal e fingir que não houve fascismo em Portugal... apetece-me ir-lhes à cara."