Exposição de cadáveres envolta de novo em polémica
Quase 14 milhões de pessoas visitaram, desde 1997, a exibição itinerante "Mundos do Corpo - O Fascínio do Autêntico". Em Tóquio, Londres, Viena, Seul, Berlim ou Munique, a mostra esteve sempre rodeada de acirrada controvérsia entre aqueles que a consideram " um gabinete vitoriano de horrores" que explora comercialmente a morte, imoral e degradante para a dignidade humana, e os que defendem o seu interesse científico, como o fazem revistas médicas prestigiadas, como por exemplo a britânicas "The Lancet" ou "Journal of Anatomy". Desta vez, a exposição do patologista alemão Günther von Hagens chegou a Frankfurt, onde pode ser visitada até 16 de Abril e está envolvida numa nova polémica. A edição desta semana da "Der Spiegel" sustenta que a exposição tem "sido alimentada através do comércio de corpos, com as prisões chinesas, de presos executados". De facto, o centro de "plastinação" - um método, criado em 1977, por Hagens, de substituição dos fluidos orgânicos por silicone e polímeros de epóxi e poliéster, que permite preservar cada componente do corpo humano, até ao nível microscópico, na sua forma original - de Dalian situa-se nas imediações de duas penitenciárias e de um centro de "reeducação" . A revista noticia que muitos dos corpos foram comprados e não doados em vida, ao contrário do que afirma o anatomista. Ontem, numa conferência de imprensa, Gunther von Hagens não excluiu a possibilidade de entre os seus "preparados" se encontrarem executados, embora sem "o seu conhecimento" e anunciou que sete corpos já "plastinados "que apresentavam marcas de tiros na cabeça" tinham sido enterrados na China. A exposição patente em Frankfurt mostra de forma dramática que a imagem da morte e do cadáver exerce um fascínio semelhante ao do voyeurismo no campo da sexualidade. Será este deslumbramento um sinal dos tempos que baniu a morte para o espaço da medicina altamente tecnologizada? Existe na história anatómica um longa tradição de tentar simultaneamente "educar" e "entreter" o público leigo relativamente ao "objecto" corpo . Os teatros anatómicos dos séculos XVI, XVII e XVIII não tinham como função apenas instruir estudantes de Medicina, mas estavam abertos ao olhar "profano". Só quando a medicina se "profissionalizou", no século XIX, se pôs fim a esta forma de "iluminação". É precisamente o conceito de "enduteiment" (educação e entretenimento), por oposição à anatomia clássica, que subjaz a esta exposição. Trata-se de "democratizar" a anatomia, trazendo-a até às massas. E o que se vê em "Mundos do Corpo"? Duzentos "plastinados" humanos, sob a forma de corpos inteiros "despidos" de pele, sob a forma de órgãos isolados saudáveis ou com alterações patológicas - pulmões com cancro, fígados de alcoólicos -, ou sob a forma de fetos. Se o visitante tiver sangue-frio pode mesmo tocar alguns dos preparados anatómicos.Os "plastinados" sugerem os modelos plásticos das faculdades de Medicina, mas um olhar mais próximo revela que se trata de corpos reais: uma mulher no quinto mês de gravidez, com o abdómen lacerado revelando o feto de 17 centímetros, os pulmões negros por décadas de fumo, os olhos azuis com pestanas pintadas. Um homem, "passeando", que carrega a sua própria pele como um casaco sobre o ombro, uma evocação de Valverde. O "objecto" central da exposição, "O Cavaleiro", inspirado por Fragonard, mostra um homem, dissecado, sentado num cavalo oferecendo na sua descarnada mão direita o próprio cérebro e na outra o do equídeo. Nesta "peça" trabalharam, durante oito mil horas, vinte anatomistas de sete países. Talvez o momento mais arrepiante de "Mundos do Corpo" seja a "sala dos fetos". À entrada, os visitantes são alertados: "Gabinete anatómico. Pense antes de entrar aqui, porque as plastinações expostas podem ferir seriamente a sua sensibilidade". Dentro de frascos, são "expostos" fetos humanos, com entre 13 a 33 semanas, siameses, hidrocéfalos e com as mais diversas deformações.A resposta à pergunta "o que é um homem?" certamente esta exposição não poderá fornecer. Todavia, pondo por momentos de parte - se isso é possível - a ética e moral, aos visitantes é oferecido um espectáculo anatómico único, informativo e factual.