A insinuação do grotesco
Woyzeck (ou a insinuação da vertigem)de Josef NadjTalvez que o inacabamento de "Woyzzeck", o drama de Büchner (1813-1837) seja uma das razões, uma, da sua irradiação no século XX. O estado fragmentário, do material em bruto, sugere a fulgurância das cenas e dos seus potenciais encadeamentos. Com a dispersão textual coexiste uma extrema concentração. Cada cena será também a busca de uma sequência, de uma concatenação, de uma montagem se quisermos, num sentido mesmo proto-cinematográfico, que mais que em cinema foi materialmente realizado na ópera de Alban Berg. Mas cada cena ou quase, na sua fulgurância, é também um condensado, não apenas uma paisagem mental mas um enunciado físico - Woyzeck que faz a barba ao capitão, a dança, mesmo ou até sobretudo as alucinações, que sendo precisamente mentais (a lua também o é) se manifestam corporalmente - como o deixou entendido Artaud em "O Teatro e o seu duplo"."Woyzeck (ou a insinuação da vertigem)", eis o título completo da recriação de Josef Nadj. A vertigem, evidentemente, em Büchner, como em Lenz ou em Kleist, no mais radical horizonte do romantismo alemão, horizonte que foi mesmo o da des-razão e de uma vertigem de breves e intensas vidas, consumações suicidárias até, mas que o foi por um extremar da ruptura e de confronto também com os modos socialmente impostos. "Wir arme leute/nós as pobres gentes", diz Woyzeck; poder-nos-emos esquecer? É da prática de Nadj um teatro do corpo. Na posteridade do drama de Büchner, do modo como irrigou os imaginários, na "galáxia Woyzeck" assim constituída, o trabalho do coreógrafo inclina-se para a hipótese de Artaud, com a acentuação que lhe é peculiar: um jogo extremamente concentrado de objectos, volumes, corpos e movimentos, a dissecação entomológica (Woyzeck que se mata arrancando as vísceras - em vez de se perder nas águas - será uma das cenas paradigmáticas de todo o teatro do corpo de Nadj), o grotesco. O grotesco, obviamente; "Grotesco, perfeitamente grotesco", como exclama o Doutor. Sendo uma peça já de 1994, "Woyzeck" surge-nos quando outras apresentações de obras até posteriores nos tornaram reconhecível o território de Nadj e as referências que convoca, de Beckett a Kafka, e de Vladimir e Estragão que esperam por Godot (o furioso andar na imobilidade de dois súbitos ciclistas) à metamorfose (ou a hipótese de parentesco com o Golem, evocado numa figura de barro) surgem-nos agora como um "reaparecimento", mesmo que as suas manifestações nesta obra tenham anterioridade para com outras entretanto vistas; e obviamente há também todo o trabalho mímico, que nos pode de imediato evocar em certos momentos Marcel Marceau mas que me parece também, e porventura sobretudo, devedor de Henryk Tomaszewski. E, por falar em território, como memória física e paisagem mental, será difícil abstrair a memória da lama e do pó das planícies magiares das origens do próprio Nadj. Notem-se as referências e articulações enquanto reconhecimento de um território logo identificável e marcante. E contudo, há algo mais.Nadj operou uma aproximação de "Woyzeck". Do texto de Büchner há uma memória e a recolha de um paradigma, o do "pobre soldado Woyzeck". É uma interpretação que se manifesta pela patente intensidade das imagens físicas. Mas do texto de Büchner também temos, eventualmente cada um de nós, memórias próprias, uma relação com o texto. A dúvida que se me foi formando é se esta apropriação de Nadj não retira a "Woyzeck" algo de fulcral: a despossessão. O desenlace sangrento com Marie, nomeadamente, é uma cena passional, mas porque o "pobre soldado" a sente também como uma despossessão mais e decisiva, passo para a despossessão final da sua própria razão. Atraído por um "grotesco, perfeitamente grotesco" que obviamente se lhe insinuou, não desconsiderou Nadj os sentidos de "nós, pobres gentes"? A dúvida é demasiado premente para não poder deixar de ser colocada.Évora, Teatro Garcia de Resende, amanhã, às 21h30