Robert Schumann e a infância revisitada
Brice Pauset (n. 1965) é um dos mais conceituados compositores franceses da nova geração. Discípulo de Boulez, Stockhausen e Donatoni, cruza conhecimentos em áreas tão diversas como a estética barroca, a filosofia medieval, a execução de instrumentos antigos ou a composição e electroacústica. O seu trabalho mais recente é "Cenas Infantis com Robert Schumann" ("Kinderszenen mit Robert Schumann"), uma obra que responde a uma encomenda da Casa da Música. O compositor ouviu pela primeira vez a sua peça na passada terça-feira, no Porto, no ensaio que antecedeu a sua estreia mundial, hoje à noite, em Viana do Castelo. "Já tinha trabalhado com o Remix anteriormente, no Festival Obra Aberta, e fazia uma ideia da sua sonoridade. Por essa razão, posso afirmar que já esperava este resultado, e estou satisfeito", disse Pauset no final do ensaio, confessando-se, no entanto, expectante quanto à reacção do público.O ponto de partida para esta composição é uma obra-prima do repertório pianístico e, como tal, Pauset sente o peso da responsabilidade ao juntar o seu nome ao do compositor alemão. "Tive o cuidado de lhes chamar 'Cenas Infantis com Robert Schumann' numa clara indicação de que esta é mais do que uma simples orquestração. A surpresa irá resultar do facto de eu transformar uma peça sobejamente conhecida e agradável em algo bizarro", explicou o compositor ao PÚBLICO.Pauset conhecia a obra de Schumann desde muito novo, de quando a tocava ao piano, mas desde essa altura que a sua percepção o levava numa direcção oposta ao que o compositor alemão havia escrito. "Quando decidi fazer este trabalho, pretendi tornar clara essa ideia que assolava a minha imaginação ao ouvir as 'Cenas Infantis'. Por isso, a orquestração do original coexiste com outros episódios e é complementada por um prelúdio e alguns interlúdios."Os títulos das peças tiveram uma importância clara nas escolhas de Pauset. "Resulta do título o uso de brinquedos no prelúdio, por exemplo." A instrumentação partiu de uma concepção coreográfica do espaço sonoro. "Todos os naipes estão bem espaçados. Uma harpa bem isolada, um acordeão do lado oposto e que faz a ligação entre o erudito e o popular. Sopros, cordas e percussão nos seus lugares tradicionais. A escrita pianística de Schumann é muito orquestral e, por isso, optei por variar sonoridades que lembram tanto a música de câmara como a própria orquestra." O piano, esse é deixado de fora até aparecer a mais famosa das peças deste ciclo, "Traumerei" ("Sonho"). "Quando cheguei a esta parte do trabalho, pensei que tinha que usar o piano. Ele não está no palco, surge como uma recordação. Sobre o seu som distante, criei algo de muito estranho e terrífico como são, muitas vezes, os sonhos das crianças. Esta é a parte mais inquietante, uma projecção dos fantasmas da infância". Na obra de Pauset, o piano surge de novo naquele que seria o momento mais inesperado para o usar. "Ao escolher o piano para o recitativo final, aquele que seria o momento ideal para voz, preferi optar por demonstrar o lado inadequado e a limitação do próprio instrumento original."Um aspecto crucial na concepção da nova partitura foi o contraste entre as indicações de tempo e o que estamos habituados a ouvir. "Procurei reajustar o tempo de acordo com as referências interpretativas que temos hoje." Ao optar pelo tradicional em vez do original, o compositor afastou-se da autenticidade, espelhando o processo de mutação a que uma peça está sujeita pelo passar dos anos. "Essa é uma das características das obras-primas, dos chamados clássicos. São peças que, pelo seu conteúdo, convidam os intérpretes a novas e inesgotáveis leituras. Foi um pouco o que fiz. Por outro lado, procurei criar as ideias a partir do texto e, às vezes, reajustei-o. Existe uma famosa passagem em que Schumann procurou utilizar as notas correspondentes ao nome de Bach, mas acabou por deixar de fora uma das notas. Reescrevi toda essa passagem e, alterando o original, completei o nome de Bach."Ao ser questionado sobre as diferenças entre a tradição composicional alemã e francesa e as suas repercussões nesta obra, um natural ponto de encontro, Pauset admite que "esta é uma escrita claramente de raiz germânica. Sendo eu francês, sempre tive o rótulo de compositor alemão e a verdade é que sempre fui mais influenciado pela linha de Stockhausen e a tradição sinfónica alemã do que pela estética de Messiaen."Remix EnsembleStefan Asbury (direcção musical)Piia Komsi (soprano)"Cenas Infantis com Robert Schumann", de Brice Pauset + obras de Hans Abrahamsen e Unsuk Chin.VIANA DO CASTELO Teatro Sá de Miranda, hoje, às 21h30.Bilhetes: 2,5 euros.PORTO Teatro Helena Costa, amanhã, às 21h30.Bilhetes: 10 euros.