Lisboa 94, dez anos depois
Passaram dez anos sobre Lisboa'94 - Capital Europeia da Cultura. Sobre a sua oportunidade, o seu impacto na população portuguesa, sobre os benefícios económicos e artísticos e sobre a imagem que gerou para o exterior faltam estudos substanciais credíveis e cientificamente válidos, e creio que hoje será demasiado tarde para os realizar.Mas, dez anos depois, Lisboa está substancialmente diferente e é oportuno reflectir sobre o que mudou estruturalmente e o que é desejável que aconteça num futuro próximo. Lisboa'94, como todas as outras capitais culturais, foram e continuam a ser uma tentativa de reivindicação de visibilidade das cidades periféricas afastadas dos grandes centros de distribuição das indústrias culturais.Claro que houve capitais culturais que, tendo-se posicionado de uma forma singular e assumidamente programática, acabaram por transformar-se em cidades incontornáveis nos tempos imediatos à sua realização. Os melhores exemplos foram Glasgow e Antuérpia.Com Lisboa tal não aconteceu, eventualmente por ter sido a sua organização de pelouros um arranjo partidário do bloco central (era então Secretário de Estado da Cultura Pedro Santana Lopes e Presidente da CML Jorge Sampaio), o que desde logo arredou a hipótese de criar uma programação de autoria, de um tema ou de um problema que equacionasse a cidade e assim desse um sentido de futuro à capital cultural.Haverá ainda a considerar outros déficites, como a programação por catálogo de manifestações importadas, a ausência de uma estratégia de formação de públicos (julgava-se que bastava anunciar a oferta para que os públicos "acontecessem") e a inexistência de uma substantiva co-produção internacional, capaz de envolver os criadores portugueses de modo a rentabilizar as produções e a colocar nos circuitos internacionais estas obras. Mas houve aspectos também positivos, dos quais se destacam algumas curadorias de exposições inovadoras, o investimento na recuperação de património e um ciclo de concertos de música erudita cuja programação era estruturada e sabiamente justificada. Destacam-se ainda outras situações que deixaram um legado para a posteridade: a colaboração entre as diversas instituições culturais em vários tipos de parcerias; "passou" a ideia de que as actividades culturais exigem um forte grau de profissionalismo e de actualização permanente de técnicas e de saberes; finalmente, ficou claro que os mecanismos de criação e de produção têm de ser vistos numa perspectiva de internacionalização.Nestes dez anos, as actividades culturais em Lisboa e no resto do país mudaram muito, de um modo desigual e assimétrico, com períodos de entusiasmo pela produção intercalados por períodos de falta de apoios e de estratégias de concertação e de circulação de obras e de autores.Nestes dez anos novos equipamentos e organizações culturais apareceram: dos centros culturais aos cinemas e às editoras, a maioria de grande escala, possibilitando uma oferta maior, em grande parte, das correntes "mainstream". Embora nalguns casos tenham sido também apresentadas algumas produções sincréticas minoritárias e algum multiculturalismo. Produtores de música, independentes, sobretudo de música popular, apareceram impondo algum dinamismo e correspondendo a alguma necessidade de públicos.Menor foi o aparecimento de grupos, organizações e propostas alternativas exteriores ao aparelho do Estado, não no sentido neo-liberal de total independência económica mas de projectos que não tenham à partida a ambição de se tornarem institucionais.Este é sem dúvida um dos grandes déficites destes dez anos. Esta falta traduz também uma hierarquização do consumo cultural, baseado ainda numa arcaica divisão entre alta cultura e baixa cultura, tipologia esta há muito ultrapassada por públicos de cidades onde a actividade cultural é estruturante na vida social e económica da cidade e onde o consumo se faz segundo a figura da difusão, e por isso a responsabilidade da distribuição cultural é mais colectiva e menos arregimentada.Nestes dez anos houve também a Expo'98, que foi uma experiência de modernidade citadina e que provou que a programação cultural popular pode ser festiva sem ser kitsch. Mas novamente a experiência da internacionalização e da co-produção portuguesa foi diminuta. Nestes dez anos surgiram novas profissões como os programadores culturais e curadores, assessores de comunicação cultural, produtores, novas gerações de galeristas e gestores culturais com uma formação específica e sólida - feita tanto nas universidades estrangeiras como em Portugal - e detentora de uma preparação sólida nas áreas da gestão, economia da cultura, história das culturas, antropologia social, direitos de autor, comunicação (sabem que comunicar é muito mais do que colocar anúncios nos jornais), e reivindicando com legitimidade a reactualização da gestão dos espaços culturais e das organizações que vão sendo criadas. Nestes dez anos passou a viver-se no quotidiano a experiência da globalização e as novas gerações sabem que já não é condição suficiente ser melómano para dirigir uma organização cultural, que a exigência de estar "conectado" com a comunicação internacional é fulcral na criação de uma cidade cultural em expansão.Passados dez anos sobre Lisboa'94, numa cidade diferente que passou a ser uma cidade de imigração diversa e de circulação permanente, uma cidade que sente no dia-a-dia as marcas arquitectónicas da economia global, numa cidade onde os ritmos de trabalho há muito deixaram de ter um horário standard, uma cidade que importa muitos espectáculos, muitas exposições e muitos filmes, que lugar reivindica ter num horizonte de disputas - com fortes consequências políticas, económicas e de liderança regional - de cidades de referência cultural para as próximas décadas?Sem um património histórico e museológico espectacular como Roma, Paris ou Madrid, estará Lisboa destinada a ser apenas uma segunda ou terceira cidade ibérica?Estará destinada a ser apenas uma cidade de importação de obras e de passagem de objectos de culto de consumo rápido, ou pretende ser mais? E se o pretende, qual a singularidade que reivindica? Ser-lhe-á impossível ser a cidade multicultural que é Berlim ou Londres, a cidade da elegância cultural que é Florença ou Praga, e é demasiado tarde para vir agora disputar com Barcelona e Marselha a vocação de cidade das culturas mediterrânicas.Qual é pois a sua mais valia que lhe poderá dar uma singularidade cultural? Sendo uma cidade de encontro entre a Europa actual multicultural e a África e as Américas marcadas pela História da Europa, Lisboa goza da condição privilegiada de ser uma cidade capaz de problematizar este encontro complexo, tensional, mas anunciador de muitas criações de futuro. A Lisboa contemporânea pode ser uma plataforma única de criação de obras e imagens que reveja e recrie a história da criação cultural contemporânea e seja única nesse modo de se apresentar ao mundo.