Os zapatistas
1. O início da História. Há dez anos atrás, precisamente a 1 de Janeiro de 1994, o ano acordava com notícias surpreendentes. Do México chegavam relatos de uma insurreição armada. No Sul do país, na região de Chiapas, um grupo de guerrilheiros ocupava cidades e aldeias. Chamavam-se então "Exército Zapatista de Libertação Nacional". Para muitos, o EZLN nascia "fora de tempo". Ele seria apenas um vestígio de uma época que acabara com a queda dos regimes de Leste. Por isto mesmo, o primeiro grande triunfo dos zapatistas foi esse simples gesto de existência, o levantamento que parodiou as teses do fim da História. Essa paródia deu-se simplesmente fazendo a História com as próprias mãos.A insurreição zapatista evidenciou em si mesma que nada do que mexe está "fora do seu tempo". Naquela manhã, os zapatistas desarmaram a mentira de todos os que falavam em nome do futuro, os neoliberais triunfantes. Acontece que o fizeram tornando-se igualmente os mais radicais críticos do anticapitalismo tradicional. E isso é o que hoje mais nos interessa sublinhar. Não para consagrar uma nova Moscovo no coração da selva lacandona. Não para desmascarar em Marcos um novo Lenine. Mas exactamente pelo contrário. E o contrário resume-se às seguintes três rupturas que os zapatistas nos oferecem: ridicularização da nação, revolta contra o Estado, crítica das vanguardas. 2. Nação. Os zapatistas inauguram-se como uma luta nacional dos indígenas contra o Estado-nação que sempre os esqueceu. Nestes dez anos, muita coisa mudou. Por um lado, os zapatistas passaram a promover encontros intercontinentais e, num acesso de puro delírio, chegaram já à fase intergaláctica. Por outro lado, num excesso de consequência, procuram organizar-se em assembleias constituintes, sediadas nas zonas libertas da regra do Estado e dos seus exércitos. Por cima e por baixo, no delírio como na consequência, no desejo como na realidade, os zapatistas abandonaram a nação. Fizeram-no para assentarem os pés na terra e para se colocarem no olho do planeta. 3. Estado. Os zapatistas não gostam do Estado. O que seria um sucesso para os movimentos de libertação nacional, ao longo do século XX, seria um fracasso para os zapatistas. Eles não procuram constituir-se como poder ou sequer procuram tomar o poder. Os zapatistas ambicionam sim um poder horizontal, organizado comunitariamente e situado numa rede global. Procurando novas relações de poder, eles procuram desmantelar o poder. Contra boa parte da história política da esquerda do século XX, na Europa como fora da Europa, os zapatistas retomaram a tradição dos sovietes contra a tradição do Estado, a tradição do militante contra a tradição do soberano. Nos últimos anos, à esquerda, os zapatistas foram os mais consequentes. Foram aqueles que questionaram directamente o império. Eles não bombardearam o mundo, como Clinton, nem penalizaram o aborto, como Guterres. Sem a hipocrisia das "relações internacionais", sem o moralismo das "preocupações sociais", os zapatistas reinventam muito pragmaticamente as relações de poder em duas questões-chave: propriedade da terra no México, privatização da economia no mundo neoliberal. 4. Vanguardas. Os zapatistas têm construído uma caótica imagem de si mesmos. De intelectuais românticos exilados na selva a índios mexicanos em "tournée" política pelo país. O seu símbolo principal é Marcos, um universitário que no final do século passado sai da Cidade do México para ir para a selva. Exército que não procura o triunfo militar e que deixa de ser exército, movimento político que não quer ser elite nacional, nem razão de Estado, o zapatismo é "apenas" a voz plural daqueles que dele fazem parte. Ele não quer falar em nome de ninguém, porque o seu objectivo é que todos falem em seu próprio interesse. Ele não quer representar. Ele quer simplesmente apresentar-se. Ele não quer intermediar conflitos, ele quer promover conflitos onde encontra a dominação. Esse é o poder que os zapatistas têm procurado, o poder de olharem para tudo e todos, construindo o mundo e a vida a partir de baixo - da dominação masculina às políticas do Estado mexicano, da Organização Mundial do Comércio às mobilizações proletárias. 5. Mudar de revolução. Estas três rupturas do zapatismo estão no coração do movimento global que tem surgido nestes últimos anos. A globalização zapatista foi decisiva nas revoltas de Seattle, em 1999, ou na guerra à guerra, em 15 de Fevereiro de 2003. Ela é um episódio entre outros que marcam a década de 90. Episódios que se caracterizam pela capacidade de atacar o império ao vivo e em directo, sem a necessidade de qualquer partido ou de qualquer vanguarda leninista, sem a representação de qualquer Estado ou de qualquer último bastião do socialismo, sem a intermediação de qualquer diplomacia ou de qualquer ONU. Como a revolta dos negros em Los Angeles em 1992, como as poderosas greves em França em 1995, como a Intifada palestiniana ou ainda como as violentíssimas greves na Coreia do Sul em 1996, os zapatistas são um movimento entre movimentos que se encontrarão no próximo dia 20 de Março, na nova jornada global de guerra à guerra.O arco onde se constelam todas estas experiências, memórias e propostas foi claramente definido por Marcos quando, respondendo a uma "acusação" de um jornal norte-americano que noticiava que ele trabalhara num bar "gay" em São Francisco, escrevia: "Marcos é 'gay' em San Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, hispânico em San Isidro, anarquista em Espanha, palestiniano em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, rocker na cidade universitária, judeu na Alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra fria, pacifista na Bósnia, artista sem galeria e sem portefolio, dona de casa num sábado à tarde, jornalista nas páginas interiores do jornal, mulher no metropolitano depois das 22h, camponês sem terra, editor marginal, operário sem trabalho, médico sem consultório, escritor sem livros e sem leitores e, sobretudo, zapatista no Sudoeste do México."6. A revolução fácil. Vale a pena olhar para os zapatistas dez anos depois. Não para comemorar o "modelo". Mas para estabelecer afinidades críticas com a experiência. Seguramente que para quem se reivindicou comunista já depois da queda do Muro, os zapatistas têm uma importância romântica que prejudica a crítica e que favorece a afinidade. Não esqueço portanto o conselho de um histórico dirigente leninista português que, um dia, incomodado pelo fascínio que os zapatistas e que Marcos despertavam em mim e noutros jovens militantes, insinuava quão fácil era ser revolucionário com Internet no meio das árvores. Internet já temos. Árvores é que está mais complicado. Ainda assim, espero que ele tenha razão. Que seja fácil. membro da ATTAC (movimento social integrado no Fórum Social Europeu)