Centenário da aviação: o impulso que fez descolar a Humanidade
Com ele, longe de tudo e de todos, descolava a idade da aviação e ganhava forma aquilo que historiadores e entusiastas dos aviões denominam, não sem um certo cuidado, a primeira máquina motorizada mais pesada que o ar a possibilitar a um humano um voo livre, sustentado e perfeitamente controlado, dependente apenas da mão e da vontade do piloto.
A máquina, que Wilbur e Orville baptizaram Flyer ("Voador"), foi concebida pelos Wright não como uma invenção única mas como um sistema de invenções que deveriam ser operadas em sintonia.
Tendo por base o perspicaz trabalho desenvolvido pelo inglês George Cailey, na primeira metade do século XIX, Wilbur e Orville Wright identificaram três problemas fundamentais: a sustentação, o controlo e a propulsão.
Os Wright cedo se convenceram (influenciados em muito pelos estudos do alemão Otto Lilienthal, pioneiro dos voos em planador tripulados) de que as asas eram elementos aerodinâmicos óbvios na concepção de uma máquina capaz, de facto, de rasgar os céus.
No domínio da propulsão, o uso de motores para impulsionar a aeronave parecia também mais do que adequado.
Estudiosos ávidos e metódicos, os irmãos Wright conjugaram esforços para desenvolver uma metodologia que permitisse a um piloto controlar a máquina em voo.
Numa conferência realizada em Chicago, perante a Western Society of Engineers, em Setembro de 1901, Wilbur Wright defendeu que o problema que até então tinha impedido o homem de dar forma a um avião (a palavra havia sido criada pelo francês Clément Ader, dez anos antes) funcional se prendia com "o balanço e o rolamento constante, de um lado para o outro, da máquina, depois de conseguir, de facto, descolar."
O desenvolvimento de um método de controlo aéreo que permitisse ao operador da máquina não só controlar a estabilidade do aparelho, mas também escolher a direcção a tomar tornou-se uma prioridade para os irmãos Wright.
Depois de meses a observar o comportamento, durante o voo, de aves de grande envergadura, Wilbur reparou no movimento subtil que incutiam às asas e que lhes permitia manobrar e estabilizar o fluxo de voo.
Um dia, enquanto empacotava num caixote de papelão algumas peças provenientes da oficina de bicicletas que possuía com Orville em Daitona, Ohio (cidade de onde eram originários), Wilbur deu por si a agitar as dobras da caixa de cartão e a revolucionar a aeronáutica: o problema do controlo da estabilidade das máquinas aéreas poderia ser resolvido, fazendo bascular (os Wright diziam arquear) a ponta das asas de um aparelho de forma a aumentar ou a diminuir a sustentação.
Quando os Wright efectuaram os quatro voos com os quais inauguraram, a 17 de Dezembro de 1903, a história da aviação sustentada e funcional, o Flyer estava equipado com asas flexíveis e com uma alavanca, que permitiam ao piloto fazer arquear as extremidades das asas, controlando assim o rolamento e a sustentação do aparelho.
Quando a fama escapaVoar. Pelo mais íntimo dos sonhos do homem passaram desde cedo enredos complicados, onde a audácia se confunde com a loucura e a mitologia com a tragédia. Antes dos irmãos Wright, são muitas os relatos, os impulsos e as desilusões de quem, como Ícaro, procurou compreender e imitar as aves. Mas à maior parte dos pioneiros da aviação experimental que competem com Orville e Wilbur Wright podem apenas ser atribuídos pequenos saltos, sem sutentação, nem controlo.
A Clement Ader, por exemplo, pode ser creditada, em 1890, a primeira descolagem propulsionada por um motor. No entanto, a máquina, movida a vapor, elevou-se apenas a oito polegadas, insuficientes para que possa ser considerado um voo.
Ao nome do alemão Gustav Whitehead, que imigrou para os Estados Unidos na década de 90 do século XIX, estão associadas vários relatos de voos não comprovados.
Até a Nova Zelândia reivindica para um seu nacional a glória de um primeiro voo em avião: em Março de 1903, nove meses antes dos Wright terem sobrevoado os areais de Kitty Hawk, Richard Pearse, um agricultor excêntrico, terá preconizado um voo singular de 135 metros, a bordo de monoplano construído com canas de bambu e lona.
Falhanços e polémicas à parte, o legado dos "gloriosos malucos das máquinas voadoras", como ainda hoje são conhecidos os pioneiros da aeronaútica, alterou hábitos e aproximou povos, reduzindo o mundo à escala de uma aldeia. Cem anos voaram depois de um dos maiores saltos tecnológicos de toda a história da humanidade.
Santos Dumont, o "pai brasileiro da aviação"O grande antagonista dos Wright na demanda do epíteto de inventor da aviação é um brasileiro. Alberto Santos-Dumont é, aos olhos de muitos, o primeiro aviador a ter feito descolar um "verdadeiro" avião, o 14Bis - um aparelho capaz de descolar e aterrar sobre rodas (impulsionado pela sua própria força motriz) em vez de deslizar sobre uma calha, como os primeiros Flyers dos Wright.
Metro e meio de génio, bigode curto e aparado, postura frágil. A vida de Alberto Santos-Dumont, brasileiro "bon vivant" radicado em Paris, "pai da aviação" aos olhos das sua nação de origem, é própria das novelas da época.
Mudando-se para Paris ainda não tinha 18 anos, o jovem Dumont cedo sucumbe ao fascínio pelos aparelhos que à época suscitavam maior admiração: os balões aerostáticos.
Durante anos, trabalhou no aperfeiçoamento da dirigibilidade dos aeróstatos. Em 1901, a bordo de um dirigível, contorna a Torre Eiffel e arrecada os 129 mil francos do prémio Deutsch, que oferece aos seus mecânicos e aos pobres de Paris. Depois da façanha de 1901, tenta uma proeza ainda maior: voar com uma nave "mais pesada que o ar."
A 23 de Outubro de 1906, no campo de Bagatelle, mostra ao mundo o 14Bis, um avião feito de bambu com asas forradas a seda japonesa, e, perante uma multidão expectante, faz o aparelho descolar, eleva-o a cerca de dois metros de altura e aterra 60 metros mais adiante. A Federação Internacional de Aeronáutica regista este como o primeiro voo "de um aparelho mais pesado que o ar, propulsionado pelos seus próprios meios".
Sem pôr em questão a importância do voo dos irmãos Wright, António Silva Soares, ex-comandante da TAP e antigo aviador naval, defende que Santos-Dumont é mesmo o "pai da aviação." "Dumont não se baseou no trabalho desenvolvido pelos Wright e conseguiu voar num avião completo, que descolou por si próprio e aterrou por si próprio", explica. "A máquina dos Wright era mais um motoplanador: um motorzinho fraco num aparelho com asas flexíveis que lhe davam alguma sustentabilidade."
Idealista e indiferente ao lucro, nos antípodas do secretismo proteccionista dos irmãos Wright, recusou patentear as suas invenções e ofereceu os planos de pormenor do Demoiselle - o mais prático e popular dos aviões por si criados - à imprensa, para que os entusiastas (em número crescente) da aviação pudessem construir os aparelhos.
Santos-Dumont suicidou-se em Julho de 1932. Apesar de ter passado por diversos sanatórios e de sofrer de esclerose múltipla, no Brasil diz-se que Dumont se enforcou com o desgosto de ver a "sua" invenção utilizada na guerra civil que acabava de deflagrar em solo brasileiro.
Quando a sua morte foi anunciada, a cidade de Cubangu, onde nascera, em 1873, mudou o nome para Santos-Dumont. Foi proclamada uma trégua de três dias na guerra civil e milhares de combatentes - dos dois lados da barricada - prestaram-lhe uma última homenagem, desfilando perante a sua urna, exposta na cidade de São Paulo.