"Se eu tiver certezas, não vale a pena fazer cinema"
Quando a câmara está ligada, o realizador brasileiro Eduardo Coutinho gosta de ouvir personagens reais e fazê-los voar através da palavra. Podem ser operários fabris, habitantes das favelas cariocas ou moradores de um edifício de classe média. Não importa. O cineasta de 70 anos consegue pô-los a falar sobre os seus sonhos, traumas e vivências. Nos seus documentários, não há um guião definido. A imprevisibilidade comanda o voo. "Se eu trato de gente viva, como fazer um roteiro?", indaga-se Eduardo Coutinho, cuja obra é homenageada no 7º Festival de Cinema Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira, que decorre até domingo na Biblioteca Municipal. Amanhã, às 15h, é exibido o famoso "Cabra Marcado Para Morrer" (1964-84). As filmagens da obra foram retomadas após um interregno de quase duas décadas, provocado pelo golpe militar no Brasil. Parte do material filmado nos anos 60 não caiu nas mãos da ditadura quase por milagre. Às 22h, há uma sessão de homenagem a Eduardo Coutinho seguida da projecção de "Edifício Master" (2002). Este documentário dá voz a dezenas de moradores de um prédio de classe média, em Copacabana, Rio de Janeiro. A obra ganhou o Prémio de Melhor Documentário no Festival de Gramado do ano passado. EDUARDO COUTINHO - Faço perguntas simples. Onde você nasceu? Quem é teu pai? E a tua mãe? No fundo, isso tudo é baseado naquilo que é importante na vida de um ser humano. Primeiro, que ele nasce, vive e morre. E, depois, tem aquelas coisas tradicionais como origem, família, dinheiro, saúde, amor, sexo, trabalho, morte e religião. É isso que eu pergunto. O resto é secundário. Já lhe aconteceu seleccionar personagens que não resultam no filme, ou então não encontrar pessoas interessantes para o documentário? Se eu tiver certezas, não vale a pena fazer cinema. Em documentário, você vive com o filme, não faz aquilo para ganhar dinheiro. Então, se você não tiver a possibilidade de ter surpresas, não vale a pena sair de casa. Tem gente que faz documentário com roteiro detalhado, mas assim eu só faço se for sobre natureza morta - um documentário sobre a arquitectura de Arouca ou da Feira, por exemplo. Leio os livros, conheço o lugar e escrevo em casa. Só que as pedras não me surpreendem. Aquilo que não move e não fala não me surpreende. Agora, se eu trato de gente viva, como fazer um roteiro? Se eu soubesse como um filme começava e terminava, não o fazia. Mas as instituições - o Ministério da Cultura, por exemplo - não se compadecem com esta imprevisibilidade... Sim. É por isso que eu já perdi várias vezes concursos no Brasil e no estrangeiro. Eu queria fazer um filme sobre o último dia do ano numa favela carioca ["Babilónia 2000"]. O roteiro que enviei para o Ministério da Cultura tinha só cinco linhas. Eu não sabia o que ia acontecer, estava indo lá justamente para filmar isso. E você explicava nesse roteiro que a unidade básica do seu trabalho é a imprevisibilidade das pessoas? Sim. Eles pediam um roteiro com divisão de sequências. Eu escrevi três folhas para explicar porque o meu roteiro só tinha cinco linhas, o que é um contra-senso. E, com todo o suposto prestígio que eu tinha naquela época, não ganhei. Por isso, quando o João Moreira Salles [documentarista brasileiro] perguntou se eu tinha algum projecto novo, eu disse que queria fazer um filme sem pesquisa. Enchi o saco de pesquisa. Ele sabe o perigo da minha ideia - porque, no final, posso não ter filme. Eu escolhi uma região, que será o sertão da Paraíba. Quero filmar lá trinta dias, ao invés de uma semana, porque eu vou sem pesquisa nenhuma. Vou tentar achar um distrito rural, com cerca de 300 pessoas, e vou ver se é possível fazer um filme lá. Espero começar a filmar entre Abril ou Maio de 2004. Não há um tema específico, a falta d'água ou o isolamento, por exemplo? Não, é um filme sobre nada. Um nada que é tudo. Já fiz filmes sobre um Ano Novo na favela, sobre a greve dos metalúrgicos... Este filme será sobre nada, um pouco como o "Edifício Master". Você usa muito a palavra liberdade. A liberdade de não ter um determinado sindicato a interferir nas filmagens, de não ter uma instituição a cercear o seu trabalho... Este novo projecto pode ser algo próximo dessa utopia de liberdade? Esta liberdade não existe em absoluto. É um filme sobre nada e esta é a suposta liberdade. Só que, a partir disso, interessa-me encontrar uma prisão na qual a minha liberdade tenha sentido - como o prédio do filme "Edifício Master", em Copacabana. Se eu chego num distrito rural, começo a filmar e não encontro personagens... Pode ser que as dificuldades comecem a sujar essa prisão perfeita. Se eu escolho um lugar, eu mergulho inteiramente nesse espaço. É como cavar. Eu espero encontrar um tesouro naquela limitação espacial, que é essencial. Eu preciso de uma liberdade de início para encontrar uma prisão. Ter uma prisão como limite. Como o edifício em Copacabana. Disse numa entrevista: "Não filmo para derrubar ninguém. Filmo para que as pessoas se elevem, para que voem." Você não tem curiosidade em voltar ao local das filmagens para ver se os seus personagens voaram? Não, o voo só é possível durante as filmagens. Um documentário nunca muda a vida de ninguém, social ou individualmente. Ninguém vai ficar pobre e ninguém vai ficar rico. Eu filmo em Agosto de 2001 e o filme vai ficar pronto um ano depois. Nesse ano, essas pessoas - seja da favela ou da classe média baixa - jamais fizeram um telefonema a alguém da equipa para saber quando sai o filme. Ninguém dá a mínima, a vida continua. Causou-me alguma estranheza saber que você pagava aos entrevistados. O "cachet" da Elizabete Teixeira em "Cabra Marcado para Morrer" foi, por exemplo, negociado com o filho dela. O dinheiro não coloca em causa a verdade do documentário?De jeito nenhum. A verdade do jornalismo é diferente [da do documentário]. Eu não trabalho com os factos do jornalismo. Eu sei que a tradição europeia é de não pagar "cachet" em documentário. Mas, na verdade [os realizadores europeus] estão a negociar coisas parecidas o tempo todo. Negoceiam se a pessoa aceita ser filmada, negoceiam como a pessoa vai falar. No "Nanook of the North" (1922), documentário histórico de [Robert J.] Flaherty, o esquimó não recebeu dinheiro, mas acabou por ficar amigo do realizador e recebeu dele outras coisas. O pagamento é simplesmente o aspecto mais cru de uma série de negociações que você faz para filmar uma pessoa.