O momento de viragem ocorreu em 1994, com "Heavenly Creatures", que lhe trouxe "respeitabilidade" e "caução artística" fora do circuito marginal do fantástico. Mas o que ficara então para trás e provocara tanto alarido? Nem mais nem menos do que um universo orgulhosamente "chunga" e "artesanal", marcado por uma profusão alucinante de sangue e tripas e pelo encontro feliz do frenesim triturador do "gore" com uma desopilante veia de humor negro. São essas as coordenadas da épica trilogia sanguinolenta composta por "Bad Taste" (1987) - primeira obra que demorou quatro anos a fazer, completada por Jackson e amigos durante os tempos livres -, "Feebles, Os Terríveis" (1989) e "Braindead" (1992), da qual vamos poder ver no Cine Paraíso, durante todo este mês, às meias-noites de sexta e sábado, a peça do meio.
E bem se pode dizer que a partir de hoje, lá para os lados do Bairro Alto, aterrará um ovni. Pois apesar de não se poder falar com inteira propriedade num "antes e depois de Tolkien" na obra de Jackson (até porque, saudavelmente, os capítulos de "O Senhor dos Anéis" conservam uma "sujidade" pouco comuns em "blockbusters"...), a verdade é que quem apenas conhecer o realizador devido a Frodo e companhia não vai acreditar em muitas das coisas que verá por aqui... E para que fique claro: "Feebles, Os Terríveis" é o melhor filme de Jackson e uma das experiências cinematográficas mais arriscadas e originais de que há memória. Aliás, o horário das sessões não podia ser mais adequado, por se tratar de um "midnight movie" por excelência, daqueles a que se acorre vezes sem conta em êxtase hipnótico, para coleccionar diálogos, acompanhar canções e saborear o perfume a bizarria.
Falar em bizarria será pecar por defeito, perante o turbilhão de obscenidades, perversões e taras convocado para esta sátira (ou será tragédia?) selvagem ao mundo do "showbussiness". O realizador transporta-nos até aos bastidores de um famoso programa de TV de variedades (que inclui cómicos, atiradores de facas e inacreditáveis números musicais) e apresenta-nos o maior bando de porcalhões e debochados desde o "Saló" de Pasolini. São os protagonistas, uma galeria de marionetas animais, espécie de versão "hardcore" dos Marretas, que inclui: um hipopótamo fêmea neurótico e obeso (é a vedeta, Heidi, diva em declínio); uma morsa traficante (Bletch, o produtor do espectáculo e companheiro de Heidi, que mantém uma relação secreta com a secretária, uma gata com sotaque de "southern belle"); um rato, com voz à Peter Lorre, que dirige filmes S&M; um sapo agarrado e veterano do Vietname; uma mosca "paparazzi" com um fraquinho por fezes; ou um elefante a braços com uma acção de paternidade interposta por uma galinha...
Como facilmente se percebe, o humor - mórbido, grotesco, escatológico - não será aconselhável a crianças (ao lado desta anarquia libertária, os Monty Python são meninos de coro...). Subversivo, "Feebles..." é um filme-limite que não recua perante nada (o episódio do coelho que estará ou não a morrer de SIDA) na celebração esfuziante do mau gosto como arte (John Waters pode sentir-se orgulhoso perante o desfile de fluidos corporais: sangue, urina, pus, vómito...). Imperturbado por pruridos morais (o argumento foi escrito em três penadas, após ter falhado o financiamento para o desejado "opus zombie" de "Braindead", num gesto de fúria face à frustração), o delírio corre à solta e a energia frenética dá origem a momentos hilariantes, como a genial sequência, entre o "flashback" e a alucinação, a parodiar "Full Metal Jacket" e "O Caçador" (com direito a roleta russa e tudo).
Quando chega o final apoteótico - um massacre digno de Peckinpah, ao som de uma canção sobre os prazeres da sodomia -, torna-se óbvio que estes bonecos decadentes não são mais do que o espelho da vulnerabilidade da condição humana, presos como estão às suas fraquezas, reféns de pulsões incontroláveis. Quem quiser conhecer esta pérola obscura, é favor arriscar. Mas podem nunca mais conseguir olhar para Cocas ou Miss Piggy do mesmo modo...