Bairro do Leal O terceiro mundo ao virar da esquina
O Porto não é só aquilo que vemos quando andamos pelas ruas de todos os dias. Por trás das suas fachadas, mais ou menos imponentes, há vida. Escondida, é certo. Mas existe. Está lá e pulsa em casebres diminutos, em corredores apertados, entre paredes pingando humidade, estuque apodrecido, bolores. Envelhecido e aviltado. Genuíno. Pobre, mas orgulhoso. É assim o Bairro do Leal, algures no miolo da côdea urbana formada pelas ruas do Bonjardim, de Gonçalo Cristovão e de Faria Guimarães. No centro da cidade, portanto.Já foi uma colmeia de gente, bairro operário de outros tempos. Hoje, subsistem neste bairro municipal cerca de cinquenta agregados familiares. Muitas casas estão devolutas, ameaçam ruína mas não tombam. Amparam-se umas à outras, ainda que os tectos destelhados das que estão vazias vão espalhando a doença, escorrendo chuvas, corroendo e afligindo. O futuro a dar este bairro vai ser debatido na quarta-feira na Assembleia de Freguesia de Santo Ildefonso, com a presença do vereador da Habitação da Câmara do Porto, Paulo Morais. Ontem, numa espécie de prólogo, os eleitos da CDU da freguesia andaram a mostrar as chagas e os floreios do bairro. O lado negro da degradação e o orgulho de um punhado de idosos que vai insistindo em manter os laços e a dignidade. "Vamos defender que é preciso fazer um levantamento rigoroso da situação do bairro e avançar para uma recuperação que respeite os direitos das pessoas. Muitos dos moradores querem sair, cansados de tanto abandono, mas há outros que querem ficar a têm um grande afecto ao bairro. Para esses, a deslocação para outros bairros será só uma forma de antecipar a morte", resumiu Fernando dos Santos Silva, eleito da CDU na Assembleia de Freguesia. "O bairro tem muitos defeitos, mas é tudo boa gente", acrescentou, recordando que, apesar de tudo, o Leal tem estado imune à criminalidade e à droga. Impera a solidariedade.Chovia ontem e, como costuma suceder, havia casas já invadidas pela água. Noutras, há placas de esferovite, folhas de papel e oleados coloridos esforçando-se por deter a queda dos estuques apodrecidos. Tudo em ponto pequeno, apertado, claustrofóbico. Seriam casas de bonecas, se as bonecas suportassem viver assim. Em muitos casos não existe sequer uma casa de banho digna do nome. Usam-se baldes e bacias que depois se despejam. Toma-se banho num balneário público que apenas abre ao fim-de-semana. "Ontem vieram seis pessoas, hoje ainda só veio uma. No Inverno vêm sempre menos", contabiliza a funcionária da junta de freguesia que guarda a chave da higiene alheia.Mas também há dissonâncias neste microcosmos que parece de outro mundo. Há a diferença que vai do tugúrio de Leonor Alves - 44 anos e voz atravessada por um silvo que lhe sobe dos pulmões, ali a morar desde 1994, entre manchas gigantescas de humidade e montes de roupa suja -, e a quase luxuosa mini-habitação de Ernestina Xavier, 69 anos e 36 de Bairro do Leal, que não quer sair da casa que foi arranjando com dinheiro, que nem tinha, e que só pede que a câmara componha o telhado. A mesma distância, mais ou menos, que vai das humidades que invadem as ínfimas assoalhadas de Ana Ferreira, 44 anos, ao orgulho de Maria Ferraz, 82 anos, 52 dos quais na primeira e única habitação que teve na vida. "Vim cá num dia de sol e gostei tanto!", recorda. Tem um corpo diminuto, que parece ter encolhido até que as paredes lhe fossem confortáveis. Agora mora sozinha, mas já repartiu aqueles cubículos com marido e quatro filhos. Como? Impossível perceber vindo de fora. Mas a "Sãozinha", conforme é conhecida, continua a adorar a casa. Todavia, acrescenta, agora quer sair. "Meteu-se-me isto na cabeça...".As histórias repetem-se. A chuva continua a cair. A manhã termina. Na mercearia do bairro, Emilinha é uma espécie de foz onde o bairro desagua. "Querem é casas novas", resume. O bairro, entretanto, vai-se esvaziando aos poucos e também a comerciante agoniza, entre a perda de clientes e o livro dos calotes. "Já começo a vender a mim e a comprar a mim", lamenta.