Uma triste história em 13 actos

Na génese do caso Moderna está, antes de mais, a conivência do Estado, e em particular do Ministério da Educação, com o regime de ilegalidade e de favor que presidiu à criação e licenciamento de grande parte das instituições do ensino superior privado. Foi numa cultura de infracção permanente, num clima de impunidade total — face às leis que regulam o ensino particular e cooperativo e às normas urbanísticas — que a Universidade Moderna nasceu e se desenvolveu.

Ao fim de meia dúzia de anos de actividade, a maior parte deles em situação de flagrante ilegalidade, já com um património de algumas centenas de milhares de contos e um pé-de-meia de mais de 700 mil contos, a universidade e a cooperativa que a criou, a Dinensino, constituíam uma presa particularmente cobiçada. Esse foi um dos motivos da luta fratricida que, em finais de 1996 e no início de 1997, abrasou a maçonaria regular, particularmente bem implantada na Moderna, e o núcleo dirigente do estabelecimento.

Ganha a guerra da maçonaria e do controlo da universidade, o grupo liderado por José Braga Gonçalves — filho do ex-reitor José Júlio Gonçalves — deu continuidade à tradição da casa. Fez letra morta de regras e regulamentos e acrescentou algumas novidades à herança: juntou-lhe o secretismo mais o autoritarismo e passou a dominar tudo e todos. Menos de um ano depois, com todos os recalcitrantes afastados, a casa já funcionava no meio da mais chocante ostentação. E os indícios dos desvios de dinheiros já eram indesmentíveis.

Em meados de 1998, os gastos em publicidade, os investimentos na comunicação social e na criação de uma almofada de apoio neste sector, as despesas sumptuárias do grupo dirigente e as suas ligações a sectores sobre os quais recaiam suspeitas de envolvimento em tráfico de armas e em branqueamento de capitais já não passavam despercebidas nas altas esferas políticas, na Polícia Judiciária e no Serviço de Informações de Segurança (SIS).

Aparentemente, o escritório de advogados de Braga Gonçalves e do seu amigo Carlos Amaro, um homem que atravessou a borrasca dos últimos meses e se tem mantido, de pedra e cal, como assessor jurídico do reitor José Júlio Gonçalves, constituía o centro de um mundo secreto, por onde passavam todos os negócios da Moderna e muitos outros. Nomeadamente, alguns que afloraram nos processos de corrupção da Junta Autónoma de Estradas e outros que têm como terreno privilegiado os mais variados paraísos fiscais e um sem-número de sociedades “offshore”.

Em 1998, o SIS procura juntar as pontas da meada, alguns gabinetes ministeriais interessam-se pelo assunto, o próprio Presidente da República mostra-se preocupado junto de alguns dirigentes partidários e o caso começa a avolumar-se nos bastidores. A nível interno, alguns dos dirigentes da Dinensino menos ligados a Braga Gonçalves ficam em pânico com o início das investigações jornalísticas e, em Novembro, um dos seus vice-presidentes é afastado por ter querido saber de mais.

Nessa altura, já o SIS tem o relatório que acabou por enjeitar em Março do ano passado e já a Moderna está à beira da falência técnica. Em menos de dois anos, o grupo de Braga Gonçalves descaminhara mais de três milhões de contos, consumindo, para lá de outros recursos, o pé-de-meia herdado da gestão anterior e perto de dois milhões de contos que foi buscar à banca. Chegou para todas as loucuras, para meter em jornais e em negócios privados de Braga Gonçalves e, suspeitam os investigadores, para investir em actividades menos limpas.

Em Janeiro do ano passado, o PÚBLICO noticia o afastamento do vice-presidente da Dinensino e vice-reitor da Moderna, Esmeraldo de Azevedo — depois de, em Dezembro, ter revelado o envolvimento do presidente da Câmara de Lisboa nas ilegalidades urbanísticas da instituição — e entra na Procuradoria-Geral da República (PGR) a primeira queixa em que se fala em gestão danosa.

No início de Fevereiro tudo se precipita, com um artigo do “Diário de Notícias” onde se dá conta do facto — conhecido há meses nas redacções — de que a universidade está a ser investigada pelo SIS e pela PJ. No dia seguinte, o PÚBLICO avança com informação detalhada sobre o descaminho de milhões de contos. Os dois meses seguinte serão frenéticos em revelações e, nalguns casos, em especulações.

Pelo caminho há a publicação, pela “Visão”, do famoso relatório cuja autoria o SIS negou; a demissão da anterior direcção da Dinensino; o afastamento de José Braga Gonçalves e a tentativa da nova direcção fazer crer que tudo não passou de um problema de gestão atribuível exclusivamente à “loucura” daquele filho do reitor.

Só depois de tudo isto e de o escritório de Braga Gonçalves, incluindo os seus ficheiros informáticos, ter sido completamente desmantelado, é que a PJ, a 15 de Março — dois meses depois da primeira queixa-crime ter entrado na PGR pela mão do ex-vice-reitor Esmeraldo de Azevedo —, iniciou as suas buscas na sede da universidade e naquele escritório.

Nessa altura, se surpresa houve para alguém, com a diligência policial, não foi certamente para Braga Gonçalves e para os especialistas em apagamento de provas. Aquilo que surpreendia até os próprios responsáveis da Dinensino era que a polícia ainda lá não tivesse ido. Afinal, as prisões ontem conhecidas parecem indiciar que nem tudo foi possível apagar.

Agora falta saber o que é que os tribunais conseguirão provar, para lá da gestão danosa cujos rastos ainda estão à vista no caos financeiro herdado por Ângelo Correia — o actual responsável pela administração da Dinensino. E falta saber, sobretudo, até onde é que vai a rede que, a partir da Moderna, envolveu muitas e variadas figuras do mundo político e universitário.

José António Cerejo/PÚBLICO

Caso Moderna chega hoje ao fim com leitura da sentença

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O Ministério Público pediu a condenação de onze arguidos e a absolvição dos restantes dois PUBLICO.PT

Chega assim ao fim um caso judicial que se arrasta em tribunal desde 2002 e que envolve 13 arguidos num polémico caso de corrupção, gestão danosa e associação criminosa.

A leitura da sentença chegou a estar marcada para 8 de Outubro, mas o caso sofreu mais um prolongamento inesperado, quando os juízes apresentaram 67 alterações à acusação. Por exemplo, ao ex-director de publicidade João Braga Gonçalves é imputado um crime de administração danosa como autor único, ao invés de em co-autoria.

As correcções abrangem quase todos os itens da acusação, entre eles temas como a alegada tomada de poder na universidade, a contratação da empresa de segurança Charon, a compra de veículos, a aquisição de participações em empresas de comunicação social, a criação da empresa de sondagens Amostra, viagens, cheques e cartões de crédito. A maioria dos advogados de defesa contestou as alterações e apresentou requerimento de produção de prova suplementar, alegando direito ao contraditório.

A audiência de 31 de Outubro serviu exactamente para os advogados dos arguidos Sousa Lara (ex-vice-reitor) e João Braga Gonçalves contestarem as alterações feitas à acusação dos seus clientes. Paula Lourenço, defensora de João Braga Gonçalves, criticou a alteração no sentido de atribuir ao antigo director de publicidade o crime de gestão danosa por "cumplicidade", depois de na acusação formulada inicialmente lhe ser imputado a autoria do mesmo.

"O João [Braga Gonçalves] não cometeu o crime de administração danosa, quer como autor, quer como cúmplice", postulou, dizendo não haver justificação para que o seu cliente esteja preso preventivamente há dois anos e meio e pedindo "coragem" ao tribunal para o absolver.

Soares da Veiga, advogado de Sousa Lara, foi também muito crítico relativamente às alterações feitas à acusação, que, a seu ver, prenunciam que o tribunal quer condenar por gestão danosa os membros da direcção da universidade.

Nas alegações finais, o Ministério Público pediu a condenação de onze arguidos e a absolvição dos restantes dois (o empreiteiro José Cagido e o ex-revisor oficial de contas Manuel Vaz) e uma pena de 13 anos para o principal suspeito, José Braga Gonçalves.

Sentença benevolente?

Na véspera da leitura do acórdão, alguns observadores admitiram à Lusa que "a montanha vai parir um rato". Segundo prevêem, o tribunal poderá não ter conseguido provar a acusação de associação criminosa imputada a oito dos arguidos e optará por suspender muitas das penas.

O julgamento do caso Moderna senta no banco dos réus 13 arguidos (quatro dos quais em prisão preventiva), acusados de crimes que vão desde associação criminosa a gestão danosa, passando por apropriação ilegítima, falsificação de documentos e corrupção activa e passiva. O julgamento começou a 10 de Abril de 2002.

O caso, associado à maçonaria, tráfico de armas, de mulheres e de droga, foi o mais mediático caso judicial português até ao eclodir do escândalo de pedofilia da Casa Pia de Lisboa. Por envolver - como testemunha - o agora ministro da Defesa, Paulo Portas, o caso chegou a atingir o próprio Governo.

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