Genes do homem e das vacas revelam influências mútuas
Os europeus começaram a beber leite há cerca de seis a oito mil anos. Que impacte teve isso nos genes das vacas? E o que aconteceu aos humanos por se tornarem bebedores de leite? O engenheiro zootécnico Albano Beja Pereira, de 30 anos, conta um pedaço desta história de homens e vacas na revista "Nature Genetics". Conseguiu provar que as vacas alteraram os genes dos humanos e os humanos fizeram o mesmo às vacas. É a primeira vez que se mostra que uma cultura, a da produção e do consumo do leite, influenciou os genes de duas espécies, dos humanos e das vacas, diz Beja Pereira, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, que prepara o doutoramento sobre a biodiversidade dos animais domésticos da bacia do Mediterrâneo no Laboratório de Ecologia Alpina da Universidade Joseph Fourier, em Grenoble, França.Os humanos, e os outros mamíferos, produzem uma enzima na infância que lhes permite digerir o principal açúcar do leite fresco. A enzima, produzida no intestino delgado, chama-se lactase e o açúcar é a lactose. Mas os humanos são os únicos mamíferos a perpetuar a produção da lactase em adultos, o que lhes permite continuar a beber leite fresco. Mas houve tempos em que a maioria das populações não tolerava a lactose, e por volta dos nove ou dez anos deixava de beber leite. Se não, causava-lhes problemas intestinais. Hoje, é tolerada por muitos humanos adultos, mas essa capacidade apresenta variações geográficas: é muito mais baixa nas populações mediterrânicas do que nas da Dinamarca, Suécia, Alemanha, o Nordeste da França e Polónia. Essa variação geográfica da tolerância à lactose está ligada à história da chegada das vacas à Europa, vindas do Crescente Fértil, no que hoje é o Egipto, a Turquia, a Síria, Israel e o Iraque, há cerca de oito mil anos. Embora a maior parte das populações não tolerasse a lactose, alguns dos primeiros agricultores da Europa teriam essa capacidade e exploraram-na. Quem podia consumir leite fresco todo o ano tinha grande vantagem face a quem não o bebia. Era mais uma fonte de proteínas, lípidos ou cálcio, sobretudo no Inverno. Assim, acabaram por chegar à idade reprodutiva mais indivíduos tolerantes à lactose e transmitiram essa característica genética aos descendentes, enquanto muitos dos intolerantes acabariam por não sobreviver. Através da selecção natural, as mutações no gene que comanda o fabrico da lactase tornaram-se mais frequentes ao fim de algumas gerações. "Era uma cultura do leite, que forçou as pessoas a serem seleccionadas para beberem leite", diz Beja Pereira, acrescentando que as populações intolerantes à lactose tiveram de se esforçar mais para contornar o problema, desenvolvendo queijos, iogurtes ou leite fermentado.Antes do trabalho de Beja Pereira, já existiam milhares de dados sobre o gene da lactase e a tolerância à lactose. Nem o seu trabalho, iniciado em 1999, era sobre aquele gene: era sobre a diversidade genética das vacas da Europa, de Portugal até à Turquia, e ainda da Síria. Estudou os genes bovinos que comandam o fabrico de seis proteínas do leite, em 70 raças de vacas auctóctones dos vários países. Queria ver se o início da produção de leite para consumo humano deixou marcas no genoma bovino. Para sua surpresa, viu que as vacas da Dinamarca, Suécia, Alemanha, Nordeste da França e Polónia têm mais mutações do que as do resto da Europa e do Crescente Fértil. Ou seja, têm uma maior diversidade genética, por isso as seis proteínas têm formas e constituições diferentes.Beja Pereira esperava que as vacas da Europa fossem menos diversas porque representam apenas uma amostra de todas as vacas domesticadas no Crescente Fértil. "Quando uma população se expande, não leva toda a diversidade que existe; é uma amostra. Esse declínio geográfico da diversidade é notório." Então, o que aconteceu para não ser assim com as vacas da Europa? A equipa de Beja Pereira, que inclui mais dois portugueses, Nuno Ferrand (do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto) e Telmo Nunes (da Faculdade de Medicina Veterinária, em Lisboa), entre outros autores, avança uma explicação. Como os agricultores do Neolítico queriam ter mais leite, aumentaram o número de vacas: "Com isso conseguiram manter mutações raras, que só um ou dois indivíduos teriam. Mantiveram ao longo do tempo mutações raras, algo que não aconteceu noutros sítios, como na Europa Mediterrânica."A história ficaria por aqui, se Beja Pereira não tivesse visto uma frase, em 2001, do historiador grego Heródoto, que manifesta estranheza, no livro "As Guerras Persas", do século V a.C., por haver povos que bebiam leite fresco nas regiões do rio Aras, que nasce na Turquia e desagua quer num rio do Azerbeijão, quer no Mar Cáspio: "Eles não cultivam plantas, vivendo apenas de gado e peixe, que retiram em abundância do rio Aras; mais ainda, eles são bebedores de leite." Esta frase, diz Beja Pereira, mostra como existiam diferenças culturais marcantes em relação ao consumo de leite. Há 2500 anos, Heródoto, que era da Europa Meridional, desconhecia que na Europa do Norte e no Cáucaso se bebia leite. Por isso, o investigador português decidiu ver se as diferenças genéticas estavam ligadas a diferenças no consumo de leite. Procurou então os dados sobre a tolerância à lactose todos os países da Europa e da Turquia - e a resposta, neste artigo, mostra que os mapas da maior diversidade genética nas vacas e da maior tolerância à lactose na Europa se sobrepõem. Também é aí que se encontram os vestígios mais antigos de pastorícia de bovinos na Europa (ver texto ao lado).Assim, Beja Pereira mostrou, pela primeira vez, que os humanos influenciaram os genes das vacas e estas fizeram o mesmo aos humanos. A cultura da produção de leite teve efeito sobre os genes tanto dos homens como das vacas. É a primeira demonstração de co-evolução cultural genética de duas espécies: "Ninguém tinha percebido isto", sublinha o investigador.