Confraria dos músicos nasceu em Lisboa há 400 anos
A maior parte dos músicos e melómanos já terá certamente ouvido falar da prestigiada Academia de Santa Cecília de Roma e das suas actividades musicais. No entanto, poucos saberão que esta tem mais de quatro séculos de história, tendo nascido a partir da antiga "Congregazione dei Musici", fundada em 1566 com o objectivo de fornecer assistência material e espiritual aos músicos e de gerir o monopólio das profissões musicais. Poucas décadas depois, em 1603, era criada em Lisboa uma instituição similar - a Irmandade de Santa Cecília -, que desempenhou um papel crucial nos séculos XVIII e XIX e que prevalece até hoje, se bem que com uma actividade quase invisível. O ano de 2003 coincide assim com os 400 anos da fundação de uma confraria dos músicos em Portugal, tendo a sua actual direcção optado por assinalar a data no dia de Santa Cecília (22 de Novembro), com uma cerimónia musical na Basílica dos Mártires (sede da irmandade desde 1787), hoje, às 18 horas, onde participam o Coro e a Orquestra Juvenil da Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Sob a direcção do maestro Leonardo Barros e com a participação de Margarida Prates, ao órgão, serão interpretadas obras de Geminiani, Lloyd Weber, Fauré e J. S. Bach. Na mesma altura será inaugurada uma pequena exposição que reúne iconografia relativa a Santa Cecília e alguma da importante documentação histórica que se guarda no arquivo da irmandade. Uma boa parte das peças a exibir decorrem da pesquisa de José Craveiro Lopes, que está a preparar um livro sobre a iconografia de Santa Cecília e que conta já com uma colecção de 7000 imagens distintas da padroeira dos músicos.Tal como acontecia com a sua congénere romana, todos os músicos de Lisboa eram obrigados a inscrever-se na irmandade, à qual tinham de pagar quotas anuais e declarar as festas e concertos que dirigiam, para poder exercer a sua actividade profissional. Deste modo, os seus Livros de Entradas contêm os registos e assinaturas dos principais compositores, cantores e instrumentistas activos em Portugal na segunda metade do século XVIII e no século XIX - as fontes anteriores a 1755 perderam-se com o Terramoto -, bem como de alguns visitantes ilustres como é o caso de Liszt. Mas o arquivo da instituição possui também outra documentação bastante rica, incluindo o espólio de sociedades musicais oitocentistas como a Associação 24 de Julho (que pretendia organizar as orquestras de todos os teatros de Lisboa) ou a Academia Melpomenense.As festas que a Irmandade de Santa Cecília promovia anualmente a 22 de Novembro foram várias vezes descritas elogiosamente pelos viajantes estrangeiros, por exemplo pelo Marquês de Bombelles, Richard Twiss ou por William Beckford: "Fui à igreja dos Mártires assistir às Matinas de Perez e à Missa de Defunctos de Jommelli, executadas pelos principais músicos da Capela Real, pelo descanso das almas dos seus falecidos predecessores. Nunca ouvi e talvez não torne a ouvir música tão grandiosa e comovente." (26-11-1787). Já no século XIX este tipo de eventos deram a ouvir ao público lisboeta obras de Mozart, Beethoven ou Cherubini, mas também dos portugueses Domingos Bomtempo, Joaquim Casimiro ou Santos Pinto."Temos a noção de que existe no nosso arquivo um património essencial para a história da música portuguesa, mas não sabemos exactamente o quê", explicou ao PÚBLICO Luciano Franco, assessor da direcção da irmandade e do Montepio Filarmónico. "Felizmente, o musicólogo Joseph Scherpereel, que faz pesquisa nestes arquivos há mais de 30 anos, prontificou-se a fazer inventariação e catalogação dos documentos ao mesmo tempo que prepara uma história destas instituições". Estas fontes têm sido igualmente úteis para várias teses de mestrado e doutoramento, ainda que a sua consulta nem sempre seja fácil devido ao reduzido horário semanal de abertura ao público ou das próprias regras da instituição. Um outro problema reside na sua conservação. Os documentos estão arrumados em armários e estantes de madeira, não há alarme de incêndios, nem cópias de segurança.Criadas num outro contexto histórico-social, tanto a Irmandade de Santa Cecília como o Montepio Filarmónico (a primeira associação de socorros mútuos fundada em Portugal, em 1834) têm tido dificuldades em acompanhar os tempos. "Gostaríamos de alargar os horizontes mas é difícil porque a classe dos músicos é muito individualista e porque os mais jovens nem sabem que existimos", explicou Luciano Franco. Dos 180 sócios actuais, um terço é pensionista e a média de idades ronda os 54 anos. "Já fomos às bandas militares e às orquestras informar o que é a associação. As pessoas ficam admiradas e interessadas, mas depois as coisas não se concretizam."Coro e Orquestra Juvenil da Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Leonardo Barros (direcção). Obras de Geminiani, Lloyd Weber, Fauré e J. S. Bach. Lisboa. Basílica dos Mártires. Rua Garrett. Tel.:213462465. Às 18h. Entrada livre.