Repórteres de guerra
Não pode comparar-se a dimensão da CBS News, provavelmente a maior estação televisiva de informação do mundo inteiro, com a RTP, a SIC ou a TVI. Do mesmo modo que não pode comparar-se a grandeza dos EUA com Portugal, desde logo no campo militar. Não é sério fazê-lo. E ninguém levaria a sério tal comparação.Paradoxalmente, é essa constatação que torna ainda mais difícil aceitar o que acaba de acontecer a um grupo de jornalistas portugueses apanhados numa emboscada após a travessia da fronteira do Kuwait com o Iraque.Desculpem-me ter de citar um livro que eu próprio acabei de escrever - o que não considero especialmente elegante -, mas a actualidade dos últimos dias obriga-me a falar de Mário de Carvalho, o repórter português da CBS News que desde há 30 anos é apropriadamente considerado o melhor "combat cameraman" da televisão norte-americana. O que equivale a dizer que ele é, possivelmente, o melhor e o mais experimentado operador de câmara de todo o mundo em situações de guerra.Apesar da sua inigualável experiência profissional em tudo o que foi conflito militar desde 1976, de ser o único verdadeiro repórter de guerra com nacionalidade portuguesa, de ter sido comando nos mais difíceis anos da luta armada na Guiné-Bissau, de trabalhar na poderosa CBS News e de ter partido para a ofensiva militar ao longo do deserto iraquiano integrado numa brigada com 25.000 soldados e várias companhias agregadas, Mário de Carvalho preparou-se cuidadosamente para atravessar a fronteira do Kuwait com o Iraque como nunca nenhum outro jornalista português o fez em vésperas de ser enviado para um qualquer cenário de guerra.Quase meio ano antes de ter começado a guerra, a própria CBS News disponibilizou aos seus jornalistas um curso em tácticas de sobrevivência e, principalmente, em guerra química e biológica, dado por antigos comandos ingleses, o chamado HET - "hostile environment training".Nos meses de Novembro e Dezembro do ano passado, o repórter português seguiu para Kentucky, para a Brigada 101 Aerotransportada, onde recebeu treino de guerrilha urbana.Posteriormente, no início de 2003, Mário de Carvalho ainda passou pelos "rangers", onde actualizou conhecimentos anteriormente adquiridos em pára-quedismo, e foi para o Kuwait (para ultimar os preparativos da sua missão jornalística no próprio cenário onde a guerra iria hipoteticamente decorrer) cinco semanas antes de a ofensiva ter realmente começado.Apesar disso, a CBS News queria enviá-lo para o Iraque com videofones e num jipe devidamente identificado como sendo da imprensa, o que Mário de Carvalho recusou prontamente. Acabou por comprar um Humvee, jipe habitualmente usado pelo Exército americano, em segunda mão, e pintou-o exactamente da cor dos Humvee da tropa dos EUA. Para o acompanhar na sua missão, escolheu um engenheiro britânico que esteve 12 anos com os "comandos" ingleses como oficial de comunicações em África. E para poder colocar em Nova Iorque as imagens recolhidas algures no deserto iraquiano -rapidamente, sem sobressaltos de ordem técnica e com a máxima qualidade possível - instalou no seu Humvee um sistema de satélite K.U. de 400 watts, capaz de "furar" a atmosfera mesmo debaixo de uma violenta tempestade de areia.Recordo a exigente preparação de Mário de Carvalho e relembro as palavras avisadas de uma alta patente do Exército norte-americano, o coronel Grismsley, segundo o qual a guerra "são horas intermináveis de tédio seguidas de breves momentos de insanidade".No caso dos jovens e desamparados jornalistas portugueses, que foram vítimas da sua impreparação, mas sobretudo dos descuidos e do voluntarismo inadmissíveis dos respectivos órgãos de comunicação social e dos responsáveis político-militares portugueses, o momento de insanidade demorou apenas sete minutos a aparecer. Felizmente, sem as consequências irreversíveis que tantas vezes estão reservadas a quem vai para a guerra, onde não basta acreditar que a sorte protege os audazes.