As carrinhas da Gulbenkian: a dívida e a gratidão!
O crescimento do sistema de Ciência & Tecnologia na segunda metade da década de 90, juntamente com o processo de relativa massificação do ensino superior, não pode constituir um argumento sobre a maturidade do sistema pelo que é necessário o reforço do financiamento público.
As organizações de trabalho têm razões para estar reconhecidas às "carrinhas da Gulbenkian". Ao desbravarem o país fomentando a curiosidade em torno do livro, aumentaram a qualificação das pessoas e contribuíram, desse modo, para o desenvolvimento de conhecimentos gerais em matéria de análise e literacia, aspectos essenciais e críticos no processo de desenvolvimento da consciência profissional que está na base da capacidade das organizações sonharem, também elas, com outros patamares de desenvolvimento.Esta crónica tem um destinatário especial: o senhor Presidente da República, dr. Jorge Sampaio, na sua qualidade de Grão-Mestre das Ordens Honoríficas portuguesas. Muito recentemente, numa crónica publicada nesta coluna a propósito do ensino técnico, foi destacado o papel que as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) tinham desempenhado em prol da melhoria dos níveis culturais dos portugueses.Em Portugal, fora a rede pública de ensino, nunca ninguém fez nada assim pela educação e é muito difícil que algum dia algo semelhante venha a acontecer, tal foi a envergadura da iniciativa que a FCG lançou - em 1958 no continente e em 1963 nos Açores e na Madeira - sob a orientação do Professor Ferrer Correia e que se desenvolveu ao longo dos anos com a nata da intelectualidade portuguesa.Visto de fora e medidas as distâncias, o trabalho das "carrinhas da Fundação" (neste texto subentende-se que esta expressão se refere ao serviço como um todo, incluindo as Bibliotecas Fixas) foi equivalente ao do explorador que desbravou caminhos intrépidos na selva. Só que aqui os caminhos eram os da ignorância, avaliada pelo número de vítimas de uma política social que condenava ao cativeiro da iliteracia um número demasiado grande de portugueses.Os números: iniciado em 1958 com 15 bibliotecas ambulantes (as carrinhas), a rede de leitura pública da FCG era, dez anos depois, já constituída por 61 Bibliotecas Itinerantes, que serviam 3142 povoações, e 156 Bibliotecas Fixas, sendo nove em hospitais e cadeias. Em 1998, quando o (agora rebaptizado) Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura festejou os 40 anos da epopeia, a rede de bibliotecas compreendia 169 Bibliotecas Fixas e 36 itinerantes (sendo oito da total responsabilidade da FCG e 28 da responsabilidade das autarquias, mas alimentadas pelo Serviço), encontrando-se localizadas 164 no Continente, 24 nos Açores e 17 na Madeira.Aos 40 anos de actividade a rede de leitura pública da FCG tinha adquirido 9.027.716 livros e outros documentos em diversos suportes e tinha atendido 56.962.637 leitores que haviam requisitado o impressionante número de 171.043.341 obras! As palavras finais da pequena brochura/programa produzida pela FCG para a sessão comemorativa dos 40 anos do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura, realizada em 26 de Outubro de 1998 em Estremoz (e donde foi retirada parte da informação aqui reproduzida), não deixam dúvidas quanto ao orgulho que as pessoas que ajudaram a criar esta imensa obra têm no trabalho que fizeram: "A grandeza destes números [citados atrás] fala por si e é a prova de terem sido cumpridos os dois objectivos essenciais que presidiram às criação deste serviço: desenvolver o gosto pela leitura e elevar o nível mental e cultural dos cidadãos." As "carrinhas da Gulbenkian" actuaram de Norte a Sul do continente e nas ilhas, em regiões onde ninguém ia e pelas quais muito pouca gente se interessava. Não sem dificuldades, provavelmente até com sofrimento, em muitas ocasiões, olhado o país nas suas agruras físicas.Há, em Portugal, muita gente que está infinitamente reconhecida à rede de leitura pública da FCG pelas portas que lhe abriu ao conhecimento. Existem hoje pessoas que se são o que são devem-no em parte ao serviço de bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. Existem instituições - Câmaras Municipais, organizações não-lucrativas - que já souberam reconhecer a sua importância.Portugal, nós, como comunidade, somos imensamente devedores ao hoje designado Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da FCG. O senhor Presidente da República, na sua qualidade de líder político esclarecido e antes disso de cidadão empenhado, está em condições de perceber, melhor do que ninguém, que Portugal tem uma dívida que ainda não foi saldada: reconhecer que as "carrinhas da Gulbenkian" tiveram um papel extraordinário no desenvolvimento da mentalidade portuguesa no século XX e uma acção inigualável na formação do espírito de cidadania que havia de tornar possível o surgimento de uma atitude democrática no país.O Presidente da República era por certo dos que tinha livros em casa. Mas, como pessoa de afinada formação, compreenderá melhor do que ninguém o que se escreve nesta crónica - ou não tenha sido seu também o combate contra o ostracismo e a ignorância. Isso mesmo ficou demonstrado quando, em 1998, acedeu presidir à sessão solene realizada em Estremoz e produziu aí um belíssima conferência sobre a sua relação com o livro.Falta agora cumprir a outra parte desta longa e única história: o Estado, em nome dos cidadãos, assumir o gesto digno que falta - reconhecer a genuinidade ímpar desta acção e inscrever o nome do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian entre aqueles que se destacaram por trabalharem para que, um dia, fossemos melhores.Na vertigem do tempo em que vivemos, existem gestos que são absolutamente tocantes. Por certo os milhões de portugueses que um dia preencheram aquele pequeno rectângulo de papel, para levar para casa durante quinze dias o livro que os fazia sonhar, se associariam a uma distinção assim, que é mais do que merecida.estevaomoura@yahoo.com