O Sexo e a Cidade
Imaginemos Carrie Bradshaw, a colunista-escritora interpretada pela actriz Sarah Jessica Parker, a bater esta questão no teclado do seu portátil, sentada na cama, em "T-shirt" e cuecas, com uma perna debaixo do rabiosque, provavelmente a roer uma cenoura ou a beber um copo de vinho branco e a ouvir música no seu apartamento semi-desarrumado. Imagine-se apenas, porque as perguntas de Carrie -- que ao longo de cada episódio vão ganhando respostas através de experiências pessoais, as suas e as das amigas, até se tornarem num artigo para a sua coluna semanal - parecem sempre mais dirigidas, menos definitivas. Mesmo quando encerram generosas carradas de filosofia.Carrie pode dar-se ao luxo de filosofar. Se há sinais de "stress" na sua vida, eles prendem-se muito mais com as angústias sobre que sapatos usar com um boné de basebol ou com a dúvida sistemática de perceber se pedir um vodka laranja num "cocktail" é estigma de falta de classe ou sinal de quem se está nas tintas para as opiniões dos outros. Futilidades? Talvez. Mas o que é certo é que essas são decisões que - como mais tarde percebemos à medida que o argumento desta série de culto, O Sexo e a Cidade, se desenrola - podem ter consequências decisivas na vida de cada um de nós (ou delas).Como Carrie, também Samantha (Kim Catrall), relações públicas; Charlotte (Kristin Davis), conservadora de uma galeria de arte; e Miranda (Cynthia Nixon), advogada, têm uma vida profissional gratificante. Pelo menos, assim parece, porque pouco ou nada sabemos desse período do seu dia-a-dia. Quando as vemos, ou estão a tomar o pequeno-almoço juntas, remoendo as agruras ou as excitações da noite anterior, ou já se juntaram de novo para uma saída nocturna, eternamente frescas e disponíveis. E assim, passando por cima dessa pequena preocupação que é ganhar a vida, elas podem dedicar-se durante 50 minutos de emissão ao que realmente interessa: o SEXO (e a cidade, um bom bocado menos).Recuemos a 1998, ao primeiro episódio da série. A sinopse diz-nos que, no aniversário de Miranda, que estará nos seus trinta-e-poucos, as quatro amigas chegam à conclusão que é melhor deixarem de procurar o homem certo e começarem a gozar a vida - vulgo, a ter sexo na boa, como os homens. E, alcançado o consenso possível, ei-las que partem de imediato para o terreno de caça.(O telespectador masculino, neste ponto, começa a sentir uma estranha comichão na alma. Não só dá por si a pensar que, "se a coisa é assim em Nova Iorque o que faço eu neste sofá?", como desconfia vagamente que uma série de leis universais estão a ficar vulneráveis a atentados sexistas.)A estratégia - bem como as motivações - são diferentes para cada uma delas. Carrie parece preocupar-se muito mais com a profundidade dos seus sentimentos e, invariavelmente, vê-se confrontada com problemas mais "fracturantes", para utilizar a expressão que em tempos fez furor na política portuguesa. Fingir que deixou de fumar para estar com um homem (Aidan)? Voltar para o seu antigo caso mesmo depois de saber que ele é casado (Mr. Big)?Ser protagonista tem destas coisas e a pobre Carrie vê a sua vida muito mais esmiuçada do que as das outras moças. As neuras e os pontos de interrogação repetem-se com tal intensidade que é preciso gostar muito dela para não perder a paciência (e preparem-se, que o futuro ainda lhe reserva um outro grande amor...). Na Internet (www.whowouldyoukill.com), à pergunta sobre quem gostariam de matar na série, os cibernautas escolhem à cabeça as personagens de Mr Big, o amor perfeito que paira na vida de Carrie, e a própria. A seguir vem Charlotte, a amiga bonitinha, tão querida, cujo conservadorismo serve de contraponto perfeito às loucuras desbocadas e cínicas das outras. Ela, a única que tem como objectivo definido o casamento, que não alinha em sexo no primeiro encontro, que franze o narizinho e arregala os adoráveis olhinhos sempre que as outras entram em detalhes mais escabrosos. É a primeira a casar-se, mas não a primeira a ser mãe...No pormenor dos excessos, Samantha não tem rival. Para ela, Nova Iorque é um supermercado de homens, onde ela se pode dar ao luxo de experimentar o produto de todas as prateleiras, sem levar nada para casa. De homens e, já agora, de mulheres, que a moça não é esquisita e não se lhe conhecem tabus.A advogada Miranda vive algures no meio. Suspeita-se que também procura o par ideal e investe em relações mais duradouras, mas, por ser mandona e cínica, tem tendência para se tornar "mamã" de bebezões peludos que nunca estão à altura das suas expectativas e, ainda por cima, acabam, sem excepção, por se revelar miseravelmente humanos em pormenores como deixar cuequinhas sujas. Assunto que Miranda não se coíbe de debater com as amigas...Porque elas falam de tudo, sem falsas solidariedades para com os seus parceiros, qualquer que seja o grau de envolvimento na relação. Afinal, apesar de haver milhões de homens solteiros em Nova Iorque, há muito poucos interessantes e as almas gémeas de cada uma podem bem ser as das outras três...(O macho latino já está às voltas com uma urticária generalizada. Então as mulheres, quando falam umas com as outras, revelam este tipo de pormenores? O tamanho do pénis, os humanos descuidos da flatulência, o cheiro das peúgas? E, mais grave, poderão elas afinal ser tão amigas, tão incondicionalmente amigas, umas das outras como os homens conseguem ser entre si? A solidariedade masculina tem paralelo na outra trincheira da guerra dos sexos?)O psiquiatra britânico William Godley, citado pelo jornal "The Guardian", não responde cabalmente a todas estas angústias, mas deixa uma certeza: "As mulheres sentem-se muito mais à vontade para discutirem pormenores da sua vida íntima. Os homens falarão dos mesmos assuntos, mas de forma muito mais vaga. Para eles, é uma grosseira deslealdade que elas revelem detalhes da forma como vemos em 'O Sexo e a Cidade'."E pronto. Os argumentistas da série não são, portanto, responsáveis pela invenção de um novo tipo de ser humano, o "mulheris-novaiorquensis-desbucadus". Afinal, há uma base científica por trás de tudo isto. Toda aquela conversa pode estar a repetir-se numa qualquer esplanada da Foz portuense ou num bar das Docas lisboetas.(Ou até no Café Stop cá do bairro, constata, arrepiado, o bom do portuga. Hipnotizado, continua a seguir a série, agora tenso e alerta, procurando os pontos de contacto que possam surgir com a sua vidinha.)Do ponto de vista masculino pode ainda haver outra fonte de, digamos, frustração: apesar de o assunto central ser o sexo, de as conversas serem maioritariamente sobre sexo e de haver muitas e variadas experiências sexuais, as imagens -- o que se vê, não o que se imagina - nunca são explícitas. Quando Miranda tira um vibrador da mesa de cabeceira com o firme propósito de acabar com um período de abstinência sexual, é humano pensar que se poderá acompanhar a acção por mais uns minutos. Mas não. E mesmo os épicos orgasmos de Samantha são bastante assépticos. sobretudo se os compararmos com a simulação de Meg Ryan na célebre cena do restaurante em "Um Amor Inevitável".O que "O Sexo e a Cidade" faz é tratar com uma desconcertante normalidade assuntos que muito poucos ousam abordar, mesmo no seu círculo mais íntimo: homossexualidade, sexo a três, oral, anal, impotência, insatisfação, traição, ciúmes, mudanças de sexo, fetiches, taras, masturbação. Até de "vaginas deprimidas" já ouvimos falar.Tudo na primeira pessoa e sem cair nem na "ordinarice rasca", nem no "insuportável lugar-comum", como salienta Nuno Artur Silva, argumentista e director das Produções Fictícias, que é taxativo: "Não sei qual dos dois é pior e em Portugal quase sempre se cai num deles quando se escreve sobre o assunto." Por isso, "O Sexo e a Cidade", apesar de ser, no seu entender, "um fenómeno de moda, que provavelmente envelhecerá mal", representa um momento de "frescura no panorama televisivo português".Exactamente por isso, porque "diverte e faz pensar", Júlio Machado Vaz, especialista em sexologia, gosta muito da série, mesmo se não a considera "didáctica no sentido estrito do termo". "Prefiro-a assim: suscitando dúvidas, aqui e ali receios, não raras vezes sorrisos de inveja ou timidez. E se a abertura é importante, para mim o segredo reside no humor, que faz cair as defesas e pacifica o tema."Para mais, o ponto de vista é diferente de tudo o que já vimos antes, por ser cem por cento feminino. Nem Carrie nem as amigas estão à espera de ser escolhidas, são elas que se movem no terreno de caça. Por isso, é natural que vivam na angústia de parar e perder o príncipe-perfeito que está ao virar da esquina, ainda melhor do que o excelente exemplar que levaram para casa na noite anterior. A solução para esse dilema é ter sempre presente os defeitos de quem se tem, para justificar a compulsiva vontade de partir. Os homens já sabiam disto há muito tempo e, pelos vistos, as mulheres também, só que nunca tinham dito nada a ninguém. A busca pelo homem perfeito alguma vez terá fim? Haverá realmente um homem perfeito? E quando aparecer, será que elas estarão vestidas para a ocasião?Ao longo de seis séries, num total de 86 episódios (os últimos oito começarão a ser emitidos nos EUA a partir de Janeiro), "O Sexo e a Cidade" tem sido a crónica bem-humorada dessa busca insana que muitas vezes se esgota em si mesma como objectivo de vida. Caça-se para encontrar a felicidade ou para se ser feliz a caçar? Talvez nunca venhamos a sabê-lo, mas vale a pena tentar, acompanhando, enquanto é possível, o trajecto de quatro mulheres bonitas, às vezes inseguras, quase sempre coerentes. E cruamente honestas consigo mesmas.(Tão honestas, reflecte o trintão português, que pode ser muito interessante ouvi-las, nem que seja em jeito de valorização profissional. Para quem desconfia abertamente das amizades entre pessoas de sexo diferente, este é um mundo até aqui escondido. O mundo das mulheres. As conversas das mulheres. Quem disse que não há paciência para ouvir falar de sexo?)P.S. "O Sexo e a Cidade" é uma série de culto, nos EUA e em muitos outros países. Em Portugal, nas condições actuais, nenhuma série poderá jamais ser de culto. Em Portugal, as séries são interrompidas, exibidas fora de ordem, empurradas por resmas de telenovelas, concursos e noticiários mastodônticos para o anonimato das madrugadas. Não há culto que resista.