"Os sentimentos confundem-se com o princípio da consciência"
Numa conversa em torno do seu último livro "Ao Encontro de Espinosa", António Damásio explica como interpreta a maneira como pensamos a relação entre os nossos sentimentos e as nossas emoções, responde a críticos e aponta o muito que falta fazer na investigação do problema mente/corpo. Diz ainda que a compreensão dos conflitos internacionais pode ser melhorada "se houver uma compreensão mais correcta do que se passa no mundo das emoções."Traz aos títulos dos seus livros nomes de filósofos, como Descartes e Espinosa, filósofos do séc. XVII. Mas é hoje em dia que encontro um grande desenvolvimento da filosofia da mente, com inúmeros filósofos, inúmeras referências. Diríamos peculiar, então, a sua relação com a filosofia porque aposta, sobretudo, em filósofos de um tempo em que não haveria ainda ciência neurobiológica.R. Em primeiro lugar, no caso de Descartes, há uma ligação com a neurociência que é historicamente mantida durante mais de cem anos. A maior parte das referências que os neurocientistas fazem à filosofia envolve Descartes. É uma figura quase emblemática da filosofia no que respeita à relação entre corpo e mente. Continua a ser hoje a referência mais frequente. Já a ligação com Espinosa acontece verdadeiramente por acaso, um acaso feliz. Tem que ver com o facto de eu ter descoberto em certas afirmações de Espinosa, a que cheguei por coincidência, que havia do lado do pensamento de Espinosa afinidades em relação ao meu. E por isso achei que valia a pena revelar essas afinidades. Por outro lado, a partir de uma reflexão baseada em dados extremamente parcos, Espinosa conseguiu chegar a conclusões com as quais concordo muito. Uma vez que descobri isso, pareceu-me que era curioso introduzir Espinosa na literatura neurocientífica, porque Espinosa, de facto, não faz parte dela.Pode percorrer milhares de artigos de neurociência e contam-se pelos dedos as referências a Espinosa. Note que não utilizei Espinosa como estratégia para apresentar as minhas ideias. Espinosa existe neste livro porque o encontrei, e isso é basicamente uma coincidência. Mas, uma vez que o encontrei, tive necessidade de o revelar. Um amigo meu perguntava-me: "Então, o próximo livro que escreveres vai chamar-se 'Looking for Heidegger.'" Não, não vou escrever nenhum "Looking for Heidegger" nem nenhum "Looking for Merleau-Ponty". Não fosse este encontro com Espinosa, e este livro teria sido muito parecido com "O Sentimento de Si", em que não há nenhum filósofo patrono.Como é possível fazer ciência de algo tão íntimo como as emoções e os sentimentos?R.: Eu diria que é possível da mesma forma que é possível fazer ciência sobre linguagem, sobre memória, sobre a atenção, sobre todo e qualquer aspecto da mente. As emoções e os sentimentos não são nem mais nem menos íntimos do que os pensamentos em geral. Assim que se dá um cariz mais íntimo, isso deve-se ao facto de que estão muitas vezes ligados a objectos que o são, mas não elas próprias. A emoção em si mesma é um aspecto biológico do organismo. A dado passo no seu livro refere uma utilidade teórica e uma utilidade prática da sua investigação. A utilidade teórica liga-se ao problema mente/corpo, a utilidade prática desdobra-se em duas: uma médica, por exemplo no tratamento da dor; outra sobre as consequências que a sua investigação neurobiológica possa ter para a esfera pública. A propósito desta última, concebe, num futuro mais ou menos distante, que possa haver uma política, uma ética, uma legalidade da emoção e do sentimento? R.: Não uma legalidade ou um política da emoção, mas sim uma influência no direito. As nossas concepções da humanidade e da cultura são influenciadas pelo conhecimento da emoção, só isso. Portanto, não há nada que se possa dizer ser o direito do sentimento. O que julgo, muito sinceramente, é que quanto mais nós soubermos sobre a natureza humana, quanto mais desvendarmos a forma como objectos e situações causam, e nos levam a sentimentos, quanto mais conhecermos os mecanismos pelos quais se processam as emoções, especialmente as mais complexas, a que chamo, no meu livro, "emoções sociais", mais seremos capazes de influenciar, com benefício, a forma como regulamos a vida, de modo deliberado, em matéria de convenções sociais, de regras éticas, de leis, em suma, em matéria de todos os instrumentos que temos à nossa mão para fazer a vida melhor.Em "O Erro de Descartes" a sua tese principal consistia em afirmar um vínculo essencial entre emoção e razão. Agora, aliás, já desde "O Sentimento de Si", a tese parece estar em negar que haja um vínculo essencial entre emoção e sentimento...R.: Não, o facto de que possa haver emoção sem sentimento não significa que não haja historicamente uma ligação, não nega que uma preceda o outro e não nega que uma leve ao outro. Aliás, exactamente como posso dizer, a propósito da emoção e da razão, que há um vínculo entre elas, eu também poderia dizer que houve períodos da história da evolução em que houve emoção sem razão. A única coisa que se transforma aqui é a sequência: a razão não vem primeiro e a emoção depois; do mesmo modo, o sentimento não vem primeiro e a emoção depois. Portanto, o vínculo existe naturalmente em ambos os casos. Quando pensamos num fenómeno mais complexo, como a razão ou o sentimento, há uma precedência histórica, uma precedência necessária da emoção.R.: É uma reacção automática que é colocada como dispositivo nos seres vivos, humanos ou não humanos, e que permite responder a certos objectos e a certas situações de uma forma não deliberada, de uma forma que vai levar ou à defesa perante uma ameaça ou à utilização de uma oportunidade. Esta é a definição mais estreita que posso dar de emoção.P.: Talvez o mais difícil de aceitar de um ponto de vista do senso comum esteja na sua proposta do que chamaríamos uma nova "revolução copernicana", a saber, uma inversão pela qual deixa de ser o sentimento privado a causa da emoção pública e manifesta, mas, ao contrário, tomando a emoção como o que causa o sentimento. Ou, retomando o exemplo, que emprega no seu livro, das palavras de Ricardo II na peça de Shakespeare, já não sendo a manifestação emocional a sombra do sentimento, mas antes este a sombra daquela.R.: Há pessoas para quem o senso comum é exactamente como diz, e há outras para quem o senso comum é absolutamente como digo. Aceitemos que o senso comum é aquele que a ciência tem para lhe dar. Aquilo que é preciso lembrar consiste fisiologicamente no seguinte: primeiro, para ter uma emoção não é preciso ter um sentimento, para ter uma emoção o que é preciso é ter um objecto. Por exemplo, quando você experimenta a sensação de mal-estar de ver um carro que se despista em direcção a si, você não está a ter sentimento nenhum, está unicamente a responder a uma imagem que constrói esse objecto e a responder a essa imagem de uma forma fisiológica que existe há tanto tempo na evolução que a pode encontrar na maior parte dos animais. Em segundo lugar, se me dissesse "Bem, pode ser que os sentimentos tenham lugar sem emoção", eu responderia com uma pergunta: e, então, de que são feitos os sentimentos? A resposta é uma série de relações, justamente as que constituem a emoção. Dessa forma, não seria dispensável haver sentimentos? Não bastaria haver emoções?R.: Os sentimentos só seriam dispensáveis se fôssemos ratos ou esquilos, ou seja, seriam dispensáveis, se vivêssemos num mundo extremamente simples em que a regulação básica fosse perfeitamente adaptada ao habitat. Ora, o habitat em que nós vivemos é do ponto de vista social e cultural extremamente complexo. E é aí que os sentimentos têm a sua oportunidade. Os sentimentos fazem a transposição do mundo da regulação automática para o mundo da regulação deliberada. Os sentimentos confundem-se com o princípio da consciência. Confundem-se, pois, com a possibilidade, não só de ter uma reacção automática, mas de saber que se tem essa reacção, e poder a partir daí construir conhecimentos e sintonizar essa reacção com determinados objectivos. Portanto, os sentimentos são indispensáveis para se conseguir criar um espaço de livre-arbítrio, que temos (isso é qualquer coisa que nos caracteriza humanamente), embora não tenhamos um enorme espaço de manobra; são indispensáveis para se conseguir deliberar, para se conseguir concluir "não devo matar".Como responde à polémica encetada por Colin McGinn no "New York Times" (de 23 de Fev.) em torno deste seu livro. R. Não há polémica nenhuma. Essa crítica em particular de McGinn é uma crítica baseada numa distorção dos factos. A primeira coisa que McGinn faz é descrever aquilo a que eu chamo emoção como sentimento e aquilo a que eu chamo sentimento como emoção. A segunda coisa que faz é ignorar a relação entre o meu trabalho e as inúmeras citações de William James. A terceira coisa que faz é ignorar o facto de a minha posição não ser a posição de William James. A coisa que faz a seguir é, confundindo as duas posições, atacar a posição de William James, como se fosse a minha, para chegar à conclusão que ambas são falsas. E, finalmente, chega ao ponto, no que diz respeito à relação entre mente e ideia do corpo, de confundir a subestrutura da mente ligada ao corpo com os aspectos mais complexos e mais abstractos da mente. Por exemplo, quando se está a fazer matemática, é perfeitamente óbvio que a construção de um símbolo abstracto é feita num substrato que está ligado à representação do corpo, porque não há nada no cérebro que não esteja ligado à representação do corpo. Esta é a posição. Não há qualquer espécie de defesa para a posição que McGinn tomou. Resulta de uma sua particularidade de filósofo que não gosta de neurociência, e que tem desenvolvido as suas críticas a todos os filósofos que gostam de neurociência ou a todos os neurocientistas que têm a ideia de que não se possa evitá-la. Não é uma crítica válida e é por isso que não é sequer uma polémica. Não será a dualidade sentimento/emoção uma refiguração das dualidades padrão mental/padrão neural, e do próprio dualismo mente/corpo, deixando por responder como?R.: O único dualismo do qual tenho de discordar é o dualismo de substância, ou seja, a ideia de que há uma mente que não tem substância ou que, tendo substância, é uma substância sem extensão. A ideia de que o corpo e a mente, tal como os entendo, sejam categorias diferentes é, a meu ver, uma ideia interessante e a manter. Há sempre circunstâncias em que seguir as intuições é válido, e outras em que seguir as intuições não é válido. Isso é algo que eu digo no meu livro a respeito das emoções sociais. Há emoções sociais muito boas, mas há também péssimas. Nós precisamos de saber quais são quais, até para nos podermos defender delas. Mas quando se separa emoção e sentimento, vale a pena fazê-lo porque nos dá um enriquecimento da pessoa humana, dá-nos a possibilidade de separar etapas, e separar os níveis fisiológicos em que acontecem as diferentes etapas. Por outro lado, quando se separa mente e corpo estamos a dar curso a uma intuição que é bastante benéfica, porque não há maneira nenhuma de, no ano 2003 ou 2004, passarmos a não falar da mente em termos culturais e passarmos a falar do corpo em termos mentais. A falha é tão grande que vale a pena manter essas categorias, até sabermos mais. Portanto, é um tipo de dualismo de aspecto o que eu aprovo perfeitamente, e nunca um de substância. Esta é uma das razões por que eu gosto de Espinosa - Espinosa é o mais monista dos monistas, afirma uma única substância, mas afirmando também que a "mente humana é ideia do corpo". É o admitir que é difícil, se não impossível, tratar deste problema.R.: O ponto final da investigação é saber como é que as descrições que estamos a fazer a nível neural vão passar para o nível mental. Mas este é um ponto em que temos de ser extremamente modestos. A única maneira de chegarmos algum dia a descobrir isso - que pode ser daqui a 10 anos ou daqui a 500 anos - é admitirmos que não sabemos. Neste ponto, eu tenho dois tipos de problemas. Primeiro, com as pessoas que julgam que já se sabe, mas é evidente que não se sabe. E tenho problemas com pessoas, como é o caso de McGinn, que dizem que nunca se vai saber.