Mais antigo líder da Ásia deixa hoje o poder

Foto
Ontem, o primeiro-ministro malaio foi ao Parlamento para o seu último discurso Ahmad Yusni/EPA

Ontem, o primeiro-ministro foi ao parlamento para o seu último discurso, emitido pela televisão. Ao longo de duas horas, os malaios ouviram um balanço dos últimos 50 anos de desenvolvimento económico, previsões optimistas para o futuro e um apelo: manter a unidade nacional, "o [nosso] maior bem".

O tom foi mais brando do que o que tem sido ouvido nas duas últimas semanas - criando um mal-estar a nível diplomático que o seu sucessor, Abdullah Badawi, terá de resolver. Os jornalistas perguntaram-lhe se isso quererá dizer que ele se prepara para sair com descrição. "Posso fazer barulho, se quiserem", respondeu. "Eu digo coisas desagradáveis. Perguntem-me coisas desagradáveis que eu darei respostas desagradáveis", cita a AP.

E sempre foi assim. Em mais de 20 anos, os malaios, e também os vários líderes estrangeiros, tiveram de se habituar às suas declarações intempestivas, politicamente incorrectas e até mal criadas do "Dr. M", como é conhecido Mahathir, médico de formação. Deixa o poder, aos 78 anos, depois de uma última provocação como chefe de estado: "Os judeus mandam no mundo por procuração".

País multi-étnico e multi-religioso

Paradoxalmente, é a ele que se atribui o facto de a Malásia ser hoje um país multi-étnico e multi-religioso - dois terços da população de 24 milhões são malaios, 26 por cento chineses e oito por cento indianos - mas tolerante. Quando se tornou primeiro-ministro, em 1981, o país estava ainda a recuperar do choque dos distúrbios raciais da década anterior.

Em 1970 escreveu uma obra polémica intitulada "O Dilema Malaio", que oferecia uma análise de como o tecido empresarial estava dominado pelos chineses e os malaios apesar de maioritários continuavam circunscritos às áreas rurais, mais pobres.

Como chefe do Governo dá início a uma política de discriminação pela positiva, concedendo juros especiais e quotas para a população malaia - a chamada Nova Política Económica. Mas sempre assegurou aos chineses, mais empreendedores, o acesso a oportunidades económicas. Há quem diga que é este o segredo do crescimento do país. Uma das suas qualidades talvez seja a sua paixão por aquilo em que acredita. Fez a Malásia produzir um carro só para provar que o conseguia fazer.

"Mahathir mudou com sucesso o debate sobre políticas económicas partindo do nível da redistribuição inter-étnica para o nível de crescimento. Ele focou praticamente todas as atenções do país no objectivo do desenvolvimento económico", explica ao PÚBLICO Greg B. Felker, especialista em política económica da Malásia e professor na Hong Kong University of Science and Technology. "Com a sua liderança, e através do aparecimento de uma classe média malaia urbana e profissional, as tensões inter-étnicas tornaram-se em temas políticos menos absorventes".

Apesar disso, a situação da etnia malaia não se inverteu totalmente. Na mesma altura em que anunciava que iria retirar-se, em Fevereiro do ano passado, Mahathir reconheceu: "Os malaios são preguiçosos. Gostam de ir pelo caminho mais fácil".

A verdade é que as orientações do primeiro-ministro, que as impôs com mão de ferro, transformaram totalmente o país, que passou a exportar não apenas borracha e estanho, mas chips de computador e telemóveis. Está entre os 20 estados do mundo que mais exportam, e o PIB per capita é de 4 mil dólares - o terceiro do Sudeste asiático, atrás do Brunei e Singapura. Os níveis de pobreza caíram drasticamente.

Apesar disso, restam alguns desafios. "Primeiro, a dependência no investimento directo estrangeiro [IDE] para liderar o crescimento torna o país vulnerável ao poder crescente da Índia e especialmente da China, que está a atrair a maior parte do IDE", diz ao Greg B. Felker. "Devem ser encontradas novas fontes e sectores de crescimento. Mas apesar da tentativa de arrancar com a revolução tecnológica, ainda não é claro que sectores devem ser esses".

Felker chama a atenção para o facto de que apesar de haver "um sistema financeiro estável, acumulou-se uma grande dívida e [o país] terá de começar a restaurar as suas finanças públicas sem prejudicar a recuperação económica".

"Obsessão democrática leva à anarquia"

"O seu principal falhanço é que as conquistas em termos económicos não se fizeram acompanhar de progresso democrático", comentou ao PÚBLICO Sarosh Kuruvilla, especialista do Sudeste Asiático da Cornell University (EUA). "De certa forma, o sucesso económico fez-se à custa dos direitos humanos, laborais e ambientais. Ele subjugou o sistema judicial, amordaçou a imprensa, e em geral suprimiu o tipo de democracia que geralmente cresce com o aumento do nível de vida".

Para este especialista, o tratamento e detenção de Anwar Ibrahim, que foi afastado como "número dois" do Governo por começar a conquistar muita visibilidade, "é característica de um líder que tem uma mão de ferro no partido, no estado e nos tribunais, e demonstra a determinação de suprimir violentamente quem quer que lhe faça oposição ou o ameace".

Em 1960 fez aprovar a Internal Security Act, uma lei que permite a um arguido estar indefinidamente preso sem processo formado. A Human Rights Watch já apelou a Abdullah que a suprima. Outra das suas leis controversas: os comunistas não podem participar em eleições. "Necessário para proteger a verdadeira democracia", justificou.

"O longo domínio de Mahathir sobre o sistema político acabou por ofuscar o sistema partidário", diz por sua vez Felker ao PÚBLICO. "Os seus sucessores terão de reformar e fortalecer o sistema partidário, mas também recuperar a independência das instituições governamentais - a burocracia, o sistema judicial, a polícia - e os media".

Ontem, quando se despediu, Mahathir respondeu aos que apelam à democracia: "A anarquia pode instalar-se quando há uma obcessão pelas liberdades democráticas".

Sugerir correcção
Comentar