A face do islão na Malásia de Mahathir
"Nós [muçulmanos] somos na verdade muito fortes. 1,3 mil milhões de pessoas não podem simplesmente ser varridas. Os europeus mataram 6 milhões de judeus em 12 milhões. Mas hoje os judeus mandam no mundo por procuração. Mandam outros lutar e morrer por eles". A despedida de Mahathir Mohamad ficou de certa forma ensombrada por esta declaração, proferida no dia 16 deste mês perante líderes de 57 países islâmicos reunidos em Putrajaya. Mahathir começou a sua carreira a fazer das questões étnicas um combate político. E terminou, inadvertidamente ou não, lançando a religião para a arena.A Malásia de Mahathir é moderada, multi-religiosa e multiétnica. Mas o movimento fundamentalista está a crescer, podendo vir a alterar o actual balanço político. "A ameaça é real", alerta um diplomata ocidental à revista "Newsweek"."Um dos principais problemas da era pós-Mahathir é o nascimento de uma apetência por uma forma mais pura do islão, com representação no partido islâmico PAS", disse ao PÚBLICO o analista David Martin Jones, da University of Tasmania (Austrália). "Isto tem o potencial de dividir o voto malaio."Nas últimas eleições, o PAS fez avanços no Norte do país. Nas legislativas do próximo ano, poderá ver aumentado ainda mais o seu apoio. Não espera que se torne na principal força política da Malásia, derrubando a coligação Barisan Nasional (liderada pelo UMNO de Mahathir), que governa desde a independência. Mas os resultados que obtiver serão decisivos para a estabilidade do próximo primeiro-ministro, Abdullah Badawi. "Dentro do UMNO, Badawi parece um pouco frágil e pode ter dificuldade em manter a unidade", continua Martin Jones.As eleições "vão determinar se Abdullah consolida o seu poder depois de sete meses no Governo, ou se é um líder fraco e temporário", disse à mesma revista outro diplomata em Kuala Lumpur. "É uma eleição em que a UMNO pode perder mais do que o PAS poderá ganhar".O partido não põe em causa a modernização económica. Mas advoga políticas sociais conformes à sharia, a lei islâmica, que gostaria de impor em todo o país, mesmo que não se aplicasse às minorias chinesa e indiana. Os seus líderes queriam já ver proibidas a venda de álcool e a existência de cinemas, teatros e clubes nocturnos. Mas as restrições ficam-se pelos estados que controlam, Terengganu e Kelantan, onde já não se vendem bebidas alcoólicas.A questão religiosa não ocupou Mahathir quando, nos anos 70, escreveu o seu livro "O Dilema Malaio". Mas depois de se tornar primeiro-ministro começou o chamado processo de islamização. "O que queremos dizer com islamização é a introdução de valores islâmicos no Governo", disse há 19 anos. Era preciso tornar os valores universais do islão, como a tolerância, em parte do património genético dos funcionários públicos, defendeu então. "Ele deve receber créditos por ter manobrado os islamistas de tal forma que a Malásia é apontada como um modelo de um estado maioritariamente muçulmano moderado e progressista", comentou ao PÚBLICO Diane Mauzy, co-autora de "Malaysian Politics Under Mahathir" (Routledge, New York, London, 1999). "Mahathir chamou à Malásia um 'estado islâmico', mas a lei civil continuou a imperar e o país continuou a ser governado por políticos seculares".Ao mesmo tempo que correspondia aos desejos da população muçulmana, esta foi também uma forma de afastar o ascendente do PAS. Foi por isso que em 1983 chamou Anwar Ibrahim, o líder radical de um movimento de jovens ligados ao PAS, que se tornou depois no vice-primeiro-ministro. As questões religiosas ficaram para o "número dois" resolver, enquanto o chefe do Governo se ocupava da economia. "Mahathir cometeu um erro ao dar a agenda islâmica a Anwar. Misturado com uma forma menos tolerante do islão desenvolveu-se um sistema educativo regressivo que era demasiado secular para alguns malaios e demasiado malaio para os chineses", comentou recentemente o analista Chandra Musaffar ao "The Straits Times Interactive". Em 1964, 98 por cento das crianças chinesas frequentavam as escolas nacionais. Hoje são apenas 5 por cento.Mas o delfim conquistou tal visibilidade - houve quem o apontasse como a única ameaça a Mahathir - que acabou por ser afastado. Em 1998 foi despedido do Executivo, expulso do partido e preso por corrupção e sodomia (a Human Rights Watch continua a pedir a sua libertação). A ironia é que as perseguições a Anwar acabaram por dar mais votos ao PAS nas legislativas de 1999, conseguindo 60 por cento dos votos dos muçulmanos malaios, recorda a BBC.Para Mauzy, "a questão do aumento da religiosidade dos malaios e a forma como ela é lidada, mantendo a Maláisa como um estado tolerante e moderado será uma questão complexa e difícil" para o sucessor da Mahathir, especialmente se "não fizer concessões no caso Anwar".Diz outra fonte diplomática à revista americana: "O Governo está a tentar apresentar as próximas eleições como 'sharia versus secularização' Quer viver sob um regime taliban, ou quer viver num estado islâmico moderado, próspero e multicultural?"Por enquanto, a Malásia não sofreu ataques terroristas, como a Indonésia, nem existem movimentos militantes no país. Mas esse é o receio de alguns malaios: o que poderá acontecer se o PAS for para o poder? É esse medo, aliado ao das minorias chinesa e indiana, que poderá dar mais garantias ao sucessor de Mahathir.