A Bolívia em convulsão
A demissão do Presidente Gonzalo Sánchez de Lozada é a solução constitucional do conflito que dilacera a Bolívia. O novo Presidente, Carlos Mesa, anunciou um referendo sobre a "guerra do gás" e a convocação de uma assembleia constituinte para "refundar a Bolívia". Foram 32 dias de confrontos, que provocaram entre 70 e 80 mortos. No dia 15 de Setembro, camponeses da zona de Titicata bloquearam as estradas em protesto contra o projecto de exportação do gás natural boliviano para os Estados Unidos através do Chile. A 25 de Setembro, a Central Operária Boliviana (COB) convocou uma greve geral, pedindo a demissão de Sánchez de Lozada. A 2 de Outubro, os "cocaleros" (produtores de coca) associaram-se ao movimento. Distintas revoltas de tom populista convergem então no movimento. As greves e manifestações generalizam-se. A repressão deslegitima o Presidente, galvaniza os manifestantes e arrasta o apoio de grupos intelectuais. Estavam frente-a-frente dois blocos antagónicos que espelham as contradições sociais da Bolívia. Um era chefiado pelo Sánchez de Lozada, 73 anos, um neoliberal e grande proprietário de minas. O outro era liderado por Evo Morales, um índio quechua de 43 anos, fundador do Movimento para o Socialismo e presidente da federação dos produtores de coca. O primeiro é um oligarca pró-americano. O segundo é um populista anti-ocidental, admirador de Castro. Sánchez de Lozada fora eleito pelo Parlamento, no ano passado, após uma votação popular inconclusiva, em que obteve 22,5 por cento dos votos contra 20,9 para Morales.O ódio aos chilenos foi o detonador da "guerra do gás". É uma herança da história. Em várias guerras contra os vizinhos - Brasil, Peru, Chile e Paraguai - a Bolívia foi sempre derrotada e perdeu mais de metade do seu território. A derrota mais traumática foi a da "guerra do Pacífico" (1879-83), contra o Chile, em que perdeu a saída para o mar e uma região rica em nitratos, que depois fez a prosperidade chilena. A Bolívia sempre foi um Estado frágil e instável. Independente em 1825, sofreu mais de 190 golpes de Estado. A população indígena estava excluída do sistema. É o país mais pobre da América do Sul. Vive das minas. Nunca conseguiu um esboço de industrialização.Tem longa tradição revolucionária. Em 1952, Victor Paz Estenssoro inaugura uma "revolução nacional", nacionaliza as minas, faz uma reforma agrária e leva os sindicatos participarem no poder. Encurtam-se as distâncias sociais e melhoram as condições de vida da população. Mas o boicote internacional e a má gestão fazem ruir o regime. Em 1964 regressa a ditadura militar, através do general René Barrientos. Em 1965-66, a Bolívia parecia a Che Guevara o país que melhores "condições objectivas e subjectivas" oferecia para lançar a "revolução continental". Guevara enganou-se e foi morto nas montanhas bolivianas, em Outubro de 1967.Os anos 1980 trouxeram o modelo neoliberal. Ironicamente, coube ao ressuscitado Paz Estenssoro desfazer o que antes fizera, reprivatizar as minas e aplicar as receitas do FMI. Nos anos 1990, o modelo neoliberal teve o seu auge no primeiro mandato de Sánchez de Lozada, que controlou uma inflação de cinco dígitos. Mas voltou a alargar as diferenças sociais. As revoltas eclodem, sem tradução política. Em 2000, foi a "guerra da água" em Cochabamba, contra a privatização. Em 2002, começou a "guerra da coca", a revolta de camponeses índios contra a proibição do seu cultivo. Sem alternativas, a proibição, imposta pelos EUA, produz desemprego e revolta. E colocou o líder dos "cocaleros" às portas do poder.A Bolívia defronta-se, desde 1999, com uma crise económica. O declínio da exportação mineira fez disparar o défice externo. A descoberta em 2001 de novas e imensas reservas de gás natural surgiu como um milagre. O FMI tornou-se optimista. Formou-se um consórcio hispano-britânico para exportar o gás para o México e a Califórnia. Seria a solução da dívida e forneceria ao país uma elevada renda fiscal. A questão do Chile foi apenas o começo. Logo a COB, Evo Morales ou o dirigente agrário índio (aymara) Felipe Quispe passaram a exigir a renacionalização do gás. As multinacionais e o Chile, argumentam, vão apoderar-se do grosso da riqueza produzida, que deveria ser utilizada para industrializar o país. A população é sensível a esta proposta e sobretudo à palavra de ordem "primeiro para os bolivianos", pois só muito escassamente tem acesso ao gás doméstico. Este conflito sobre o modelo económico só pode ser resolvido por mediação política, mas em lugar disso lançou o país numa acelerada decomposição do Estado, que fez temer o pior. Jorge Lazarte, ex-membro do Tribunal Constitucional, dizia há dias que "a possibilidade de uma pacificação do conflito por via institucional, a fim de evitar a explosão social, já é praticamente inexistente". Apaziguada a crise em termos constitucionais, a grande incógnita é a recomposição do sistema político. Os partidos não representam e o Parlamento está desprestigiado.Na Bolívia, os actores sociais têm "uma visão do poder como ocupação e controlo dos espaços sociais e geográficos", observou há duas décadas o sociólogo R. Mayorga. Os movimentos populares tendem a ser dominados por reacções de defesa comunitária e a centrarem-se no tema da repartição do rendimento, o que é normal num país pobre, desconfiando dos partidos e da democracia representativa. Segundo o FMI, dois terços dos bolivianos vivem abaixo do limiar da pobreza, e metade destes em profunda miséria. A novidade é a irrupção dos índios (65 por cento da população) como actor político e a sua novíssima percepção de que podem chegar ao poder por via eleitoral. Em 1971, o jornalista uruguaio Eduardo Galeano publicou um célebre ensaio-reportagem sobre a dependência, "Las Venas Abiertas de América Latina". Escrevia na introdução: "A divisão internacional do trabalho fez com que certos países se consagrassem a vencer e outros a perder. A nossa parte do mundo, hoje denominada América Latina, dedicou-se prematuramente a perder (...). Os séculos passaram e a América Latina aperfeiçoou as suas funções. Já não é o reino das maravilhas, onde a imaginação empalidecia perante os troféus da conquista, as minas de ouro e as montanhas de prata. Mas conservou o seu estatuto de serva. (...) A América Latina é o continente das veias abertas." Hoje, 32 anos depois, parte das Américas continua a sangrar. Em grande parte por responsabilidade das suas elites e não apenas por fatalidade da herança colonial e da dependência. No início do século XXI, a questão do Estado e do desenvolvimento permanecem em aberto. Se as experiências democráticas não produzem desenvolvimento e não integram as massas, abrem caminho ao populismo. Mas este, tal como a ditadura militar, mais reabre as veias que sangram.