"O Bobo" (87) questionava a portugalidade e inseria no imaginário fílmico nacional uma reflexão fundamental, que se ligava também a uma ideia de integração num Sul mítico. Por esta vertente de definição do Sul como utopia passava "Zéfiro" (93), viagem para um universo compósito, entre a BD e uma febril interrogação sobre as hipóteses de representação gráfica. Havia um luxuriante olhar sobre a paisagem, o estranhamento de uma ficção que se apropriava do documental, sem tempo, nem raiz.
Neste contexto, "Peixe-Lua" (2000) aparecia como síntese, que abria para uma explícita vontade de ficção, de múltiplas ficções encastradas numa saga familiar. Ainda e sempre o Sul que se estendia das planícies do Além-Tejo para a Andaluzia metafórica e poética, a que o imaginário de Lorca vinha dar uma consistência contraditória e deliquescente. E, no entanto, "Peixe-Lua" sossobrava num excesso de personagens, apontando embora para uma grandeza de visão, raras vezes intuída no cinema português.
"Quaresma" vem trazer fascinantes leituras à obra que o precede. Clarifiquemos: num filme único, de vários filmes feito, reequilibra o que na obra do cineasta é sempre composto de fragilidades e tentativas: rima com "Peixe-Lua" pela presença de Batarda (só poderá ter paralelo com Maria Cabral, no âmbito do cinema português); regressa a "O Bobo" pelo retrato de um Portugal isolado; contrapõe-se a "Zéfiro" porque parte para uma ideia de Norte, em que o exílio de um Sul em demanda e em abismo permanece como essência.
No centro de tudo, a histeria exposta da personagem de Ana, com Batarda num registo de impossível excesso, queimando o ecrã, demonizando as personagens que a cercam e resgatando-as, em simultâneo. Mas "Quaresma" (o título aponta para o período de preparação para uma Paixão e para uma Ressurreição) tem por pano de fundo uma galeria impressionante de personagens femininas com a serenidade magoada de Laura Soveral e a perturbação indízivel de Paula Guedes a pontuarem um claustrofóbico universo de uma casa dos mortos, cercada pelos confins da serra, personagem muda. Nunca ninguém filmou com esta urgência e mítica força a paisagem da Serra da Estrela, a permanência granítica do Norte de um país do Sul.
Este mundo de morte anunciada encontra fabulosa concentração na sequência inicial do enterro, sem sabermos quem é quem, numa gigantesca elipse, que depois o filme vai preenchendo como num "puzzle". A figura que conduz o percurso iniciático pela perda e pela progressiva loucura, que se apossa da protagonista e das imagens, é a personagem de David que dá a Filipe Cary uma inesquecível estreia no cinema. E a escolha de um "não-actor" acaba por revelar-se genial: é que a sua máscara imperturbável funciona como o antídoto para o "overacting" contagiante de Batarda. É ele que assegura a viagem para o "verdadeiro" Norte, uma Dinamarca triste, com ecos de Dreyer nos ventos a desfazerem-se nos moinhos geradores e nas ondas a quebrarem-se em molhes de eterno negrume. Existe, no entanto, uma pacificação pelo distanciamento em relação ao "cul-de-sac" pátrio, que condena a protagonista à loucura por não poder conter-lhe a avassaladora paixão.
Só que esta paixão possui dupla dimensão, um amor sem limites e um sofrimento "crístico", que a "quaresma" do título prenuncia em efígie. A personagem de Batarda em "sublime expiação" pelos pecados de uma entrega total, passa por diferentes momentos: entra de leve no filme, possui-o e cumpre-se, anjo do mal, anjo redentor e sacrificial vítima de uma auto-imolação.
A questão principal passa, contudo, pelo facto de que, quando se desloca para um Norte cinzento e letal, é ainda com as ilusões (e desilusões) do Sul que Morais se confronta. O luto sobre todas as mortes (incluindo o inexplicado e inexplicável sacrifício de uma espécie de duende num universo de conto de fadas maléfico) cumpre-se numa espera que parece renunciar ao mundo terreno. Talvez por isso as imagens assépticas de uma Dinamarca mais "sonhada" do que real se diluam para dar lugar ao rosto convulso de Batarda. A incomodidade que "Quaresma" nos deixa é a nossa, ligada a uma ancestral e irresolúvel portugalidade, retrato da nossa frágil grandeza e da nossa indefinível castração.