Depois da indignação, a ponderação
"Devemos renunciar a verdades reveladoras e contentarmo-nos com verdades mais modestas e menos entusiastas que se conquistam laboriosa e progressivamente, sem queimar etapas e que só através do estudo, das discussões e da racionalidade podem ser verificadas e demonstradas"Primo Levy, "Se questo è un uomo", 1958O horror que gera, emocionalmente em todos nós, os crimes sexuais em que vítimas são menores e, para a maioria deles, em grande desprotecção familiar e social, leva-nos a um estado imediato de indignação face ao injusto mas, como aponta o jurista e filósofo, John Rawls ("A Theory of Justice", 1972), esta indignação necessita de ser seguida de uma reflexão que ponha a justa distância para que a intenção moral da indignação possa permitir a ponderação. Ponderação que, para o pedopsiquiatra que tem de intervir nessas situações, obriga a uma postura guiada pela integridade científica e pela ética profissional, visando a exemplaridade, principalmente quando o seu saber científico é chamado a intervir, publicamente, como contributo para a compreensão de problemas trágicos que afectam pessoas.Ponderação que deve levar, de imediato, a um acto de prudência, consubstanciado no princípio do físico Heisenberg que afirma que a única certeza possível é a da existência das nossas incertezas. No centro de todas as notícias sobre os jovens alunos da Casa Pia que foram vítimas de crimes sexuais, duas palavras, parece-nos, carecem de um enquadramento que as situe de um modo mais ajustado ao seu significado.A principal, que dá nome às notícias, "pedofilia", é um termo que designa um diagnóstico psiquiátrico que classifica não apenas um comportamento mas, também, um tipo de funcionamento psicológico que caracteriza a pessoa que sofre desta perturbação mental. Há agressores sexuais de menores que são pedófilos mas não é certo que todo o abusador de menores seja pedófilo. Quem se dedica à prostituição de menores e/ou à feitura de material pornográfico com menores para consumo próprio e/ou comercialização (fotografias, filmes, sites na Internet, etc.) comete um crime de abuso sexual de menores mas pode não ser pedófilo.A segunda palavra, "criança", exige que, quando nos referimos a crianças vítimas reais de abusos sexuais, se distinga a "criança" dos Direitos da Criança, da "criança" no contexto da justiça. Na primeira, o conceito designa a criança universal, até aos 18 anos e remete para deveres do adulto como o cuidar bem, a equidade, a solidariedade e a justiça, inseridos numa reflexão que permita adaptar os princípios éticos ao concreto das situações do quotidiano de forma a se poder agir com benevolência, empatia, autonomia e precaução. Na segunda, já não se trata de um conceito generalizado mas de crianças e jovens únicos, muitas vezes confrontados com dificuldades psicológicas que originam grande sofrimento. Os direitos destas crianças e destes jovens ficam, então, também, vinculados à necessidade de se fazer justiça de forma a que eles sintam, da parte dos adultos, uma verdadeira relação de confiança e de fidelidade que lhes faça sentir que os verdadeiros contratos de confiança, incluindo os que fazem com a justiça quando dão os seus testemunhos, permitem, a bem da verdade e da dignidade própria, a tomada de riscos nas relações humanas. Para jovens vítimas de abusos sexuais, a vivência destes abusos que, muitas vezes, já se iniciaram durante a infância, torna-se veneno permanente nas suas memórias autobiográficas, pelo que, ouvi-los como testemunhas, é pedir-lhes que organizem uma narrativa apelando a factos que não estão, apenas, nas suas memórias episódicas que memorizam os factos acontecidos mas, principalmente, cravados nas memórias emocional e corporal com uma conotação extremamente dolorosa. Este envolvimento de dor exige que, para além de se ter, sempre, em mente, a idade actual do jovem e a idade em que começaram as práticas de abuso sexual, se criem e se respeitem ao longo de todo o decurso do processo, as condições adequadas para a revelação, de forma a possibilitar que o jovem sinta que o seu testemunho vai ser parte integrante de um acto de justiça que tem justeza e que é justo, do princípio ao fim. Para o pedopsiquiatra, a criança é, por sua vez, um conceito que remete, sempre, para uma compreensão de cada "paciente", na sua individualidade, como ser único, protagonista de um percurso de desenvolvimento psicológico e inserido num contexto familiar e social próprios. Quando o pedopsiquiatra é chamado a colaborar com a justiça vai, igualmente, em cada caso específico e atendendo à idade jurídica da criança ou do jovem, ter em atenção o seu desenvolvimento moral e a sua maturidade ética, que, segundo os estudos do psicólogo americano Lawrence Kohlberg ("The Philosophy of Moral Development", 1981), moldam a consciência moral e o sentido íntimo de justiça. No caso de se tratar de uma criança ou de um/uma jovem vítima de abusos sexuais, a intervenção clínica neste território tão dramático terá, sempre, como princípio soberano a individualidade psicológica de cada criança/jovem e será guiada pela necessidade de respeitar e valorizar a capacidade de "resiliência" da criança/jovem, capacidade que permite que o filho do ser humano, sujeito a vivências terríveis, no limite da sobrevivência e do vivível, consiga continuar um crescimento psicológico, apesar de todas as adversidades a que foi sujeito. Como nos diz Boris Cyrulnik, psiquiatra e neurologista francês, ele próprio um exemplo da força da "resiliência", toda a situação extrema, enquanto processo de destruição de vida, encerra em si mesma, paradoxalmente, e precisamente onde a vida se rasgou, um potencial de vida, um impulso invisível que permite recomeçar depois da provação, fazendo do obstáculo um trampolim, da fragilidade uma mais-valia, da fraqueza uma força, da impossibilidade um conjunto de possíveis. Mas a "resiliência" não é só uma procura, dentro de si próprio, dos seus recursos íntimos, nem só uma busca no exterior, pois ela coloca-se entre as duas, num território onde a narrativa, feita pela criança/jovem que foi ferida/o pela vida, é ouvida por um interlocutor, o que vai permitir à criança/jovem tecer a sua capacidade de "resiliência" e, desse modo, retomar um percurso com um futuro possível. É esse interlocutor e ouvinte da narrativa íntima da criança/jovem que cabe ao pedopsiquiatra, trabalhando para que a capacidade de "resiliência" do seu narrador seja uma verdadeira estratégia de luta contra a infelicidade de forma a permitir o ressurgir da vontade de viver bem a vida, apesar das sombras negras de um passado doloroso que permanecem na memória autobiográfica. Nas situações em que o pedopsiquiatra é chamado a colaborar com o juiz, em situações que envolvem menores, e se os seus saberes, os seus saberes fazer e as suas intervenções estão em territórios distintos, eles estão unidos pela necessidade de uma ética profissional que respeite a ética profissional do outro. Esta postura mútua pode parecer mais difícil do que na realidade ela é, se nos deixarmos guiar por Paul Ricoeur ("Le Juste" 1 e 2 , 1995, 2002) e considerarmos que se, por um lado, a ética do cuidar médico está no território do sofrimento de uma pessoa única, assentando o acto médico na equidade entre o saber e o saber fazer e se, por outro, a ética do acto de justiça se concretiza na sentença que separa os dois lados em conflito, designando um culpado e uma vítima e respeitando o saber das leis e dos juristas, em ambos, antes da prescrição do médico que o une ao seu paciente e da sentença do juiz que determina o culpado e a vítima, há um espaço para a interpretação e para a argumentação que exige, a ambos, um tempo reflexivo que possibilite um consenso entre os dois. Para que este consenso seja cada vez mais possível, urge iniciar, parece-nos, um amplo debate, regido por uma verdadeira ética da discussão, entre a pedopsiquiatria e a justiça, que permita, através de uma reflexão em profundidade, a construção de um verdadeiro sistema equitativo de cooperação.Sistema equitativo de cooperação que possa unir o pedopsiquiatra e o juiz numa ética do cuidar que, como insiste Leonardo Boff ("Saber Cuidar. Ética do Humano - Compaixão pela Terra", 1999) e reforça a prof. M. Luísa Ribeiro Ferreira ("Equidade e Compaixão", 2000), será a ética do futuro, que, através do paradigma aliando confiança, autenticidade, alteralidade, responsabilidade e atenção ao outro, permitirá insistir na responsabilidade de cada um pelo outro, outro como único e diferente, respeitado pelo que tem de absolutamente particular e diferente.União que permita, a ambos, juiz e pedopsiquiatra, compreenderem que, no mundo em que vivemos, se a felicidade nunca é pura, felizmente, a infelicidade também não o é, e conseguirem conjugar esforços para que, à semelhança de Boris Cyrulnik, seja possível às crianças e jovens feridos tão cruelmente pelo percurso das suas vidas amnistiarem o agressor e, apesar de tudo, viverem num mundo onde a esperança é possível.