Refutação de Riefenstahl

Seria ingénuo inferir da longevidade de Leni Riefenstahl, que 58 anos sobreviveu ao seu amado Hitler, que as questões extremas que a sua vida e obra suscitaram estivessem apaziguadas. São questões cinematográficas, imagéticas, políticas e talvez sobretudo éticas cruciais - não se lhes pode ser indiferente. E por mim não consigo também ficar indiferente quando verifico que a circunstância da morte é razão de um elogio tão apaixonado e "branqueador" das conexões nazis como a carta de um leitor no PÚBLICO de sexta-feira. E por isso também não posso ficar indiferente a dois textos: o de José Manuel Fernandes no PÚBLICO de quarta-feira e o de João Lopes, no "Diário de Notícias" de ontem.Tenho Hannah Arendt como referência das mais importantes. Um texto como "As Origens do Totalitarismo" é-me crucial, e não foi propriamente ontem que essa magistral análise das monstruosidades nazi e estalinista me contribuiu para ter presente as analogias, e como essa nova categoria política foi terrivelmente uma novidade maior do século XX. Acontece que a analogia profunda também não nos deve nunca fazer descurar que o nazismo teve uma particular extrema: o programa da "solução final". Não está em causa, de modo nenhum (seria obsceno) "relativizar" os muitos milhares de vítimas das purgas estalinistas, do terror e do "gulag", incluindo mesmo as perseguições anti-semitas, que também as houve. Mas nada na História da Humanidade se pode comparar ao anti-semitismo nazi que em termos simbólicos quis mesmo fazer desaparecer o significante "judeu" e para isso pôs em prática um programa racional de exterminação total. Retomando Hannah Arendt, a sua cobertura para o "New Times Times" do julgamento de Eichmann em Jerusalém tem como subtítulo - "relatório sobre a banalidade do mal". E por isso, parecendo ser esta uma divagação para chegar a Riefenstahl, ela não pode deixar de estar presente quando sabemos que a senhora ora falecida intentou o "embelezamento do mal", do "Mal Absoluto".Também por isso a aplicação da equivalência estalinismo=nazismo como "vulgata" é questionável nos dois planos, ético e estético, que aqui mais me importam. José Manuel Fernandes não resistiu a fazê-lo. Ao "Triunfo da Vontade", de Riefenstahl, glorificação de Hitler e de um congresso do Partido Nazi, corresponderia "O Couraçado Potemkine" de Eisenstein, feito "em nome de Estaline e da Rússia Soviética". Que precipitação!Para além de um facto que Fernandes não deixa de recordar (as posteriores atribulações de Eisenstein com o poder de Estaline, algo que Riefenstahl nunca teve com Hitler), suponho que o seu "a priorismo" político o conduz a alguns erros também de índole cinematográfica, embora não só."O Couraçado Potemkine" é sem dúvida um filme de propaganda soviética; não é, de modo nenhum, feito "em nome de Estaline". À época, 1925, Lenine já tinha morrido, Estaline era o número um mas estava longe do poder pessoal - e Estaline veio a dispor "de um aparelho de propaganda desconhecido nos tempos de Lenine" (Arendt ainda). Tenho presente que o cinema propriamente estalinista é de facto desconhecido em Portugal, mas isso, que talvez esclarecesse melhor algumas questões, não é justificação para a amálgama. Ainda assim noto três pontos: 1) que a recorrente (e delirante) figuração de Estaline em filmes desses é que é, essa sim, aproximável à de Hitler em filmes de Riefenstahl; 2) que precisamente uma das mudanças maiores do cinema estalinista face ao do período dito "revolucionário", como o "Couraçado Potemkine", é uma normalização da representação do corpo; 3) que mesmo nas suas obras mais pomposas, "Outubro" ou "Alexandre Nevski", Eisenstein ainda assim não soçobrou ao "kitsch" que, não o esqueçamos nunca, é constitutivo do totalitarismo, nazi ou estalinista. Acontece que o José Manuel dizia também algo de importante. "A sequência magistral do carrinho de bebé a cair pela imensa escadaria de Odessa [em 'O Couraçado Potemkine'] é como que a outra face do mundo ordenado, rigoroso, geométrico, sem defeitos, que Riefenstahl, nos mostrava em 'O Triunfo da Vontade'". Inteiramente de acordo, excepto num ponto: enquanto ele, na sua aproximação política, vê duas faces da mesma moeda, eu, cinematograficamente, vejo opostos. Admito perfeitamente (e interessa-me mesmo) que "O Couraçado Potemkine" e "O Triunfo da Vontade" sejam analisados conjuntamente enquanto exemplos máximos da propaganda cinematográfica (a que acrescentaria a extraordinária série de que os americanos fizeram na II Guerra, "Why We Fight?"). Simplesmente basta pensar nesse exemplo do carrinho de bebé, ou no grande plano do grito da mulher, para sabermos que "Potemkine" não é só um produto de propaganda - é um filme que nos toca, uma obra de genialidade cinematográfica.Riefenstahl fez quatros filmes, "A Luz Azul", "O Triunfo da Vontade", "Olympia - Os Deuses do Estádio" e "Tiefland". Quase não se fala, ou não se fala de todo, do primeiro e do último; são intermináveis chatices - sendo que no caso de "Tiefland" é irrefutável que a senhora sabia que os figurantes eram ciganos detidos no campo de concentração de Maxglan, que depois de assim terem "servido" conheceram o destino da exterminação. Que portanto dos quatro só sejam salientes os dois expressamente feitos para Hitler já é caso a considerar na apreciação da "genialidade". Reconheço que perante "O Triunfo da Vontade" sou incapaz de alinhavar comentários mais expeditos num texto destes: teria de o analisar sequência a sequência. Mas também reconheço inequivocamente que "Os Deuses do Estádio" é uma extraordinária "obra audiovisual". É um dos aspectos certamente mais interessantes do filme-entrevista de Ray Müller, "The Wonderful, Horrible Life of Leni Riefenstahl", a explicação pela senhora das soluções técnicas que engendrou para a cobertura das diferentes provas olímpicas. O lado técnico-artesanal da sua aproximação (exigindo novos tipos de câmaras, trabalhando minuciosamente a revelação fotográfica) e o verdadeiro despique corpo a corpo das suas câmaras com os atletas (tanto mais curioso para quem tinha sido a grande encenador de massas do filme anterior - já agora, diga-se que o documentário de Müller também demonstra que, contrariamente ao que a senhora sempre disse, ela teve carta branca de Hitler para dirigir a encenação do Congresso) são certamente singularidades maiores, a par com uma opção claramente ideológica-glorificadora pelos contra-picados, com o céu em fundo, e a cobertura do mesmo acontecimento por uma série de câmaras em diversos ângulos. A herança de "Os Deuses do Estádio" é de facto imensa: daí decorrem as transmissões de desporto. É esse o seu mais directo legado. Riefenstahl afinal uma grande inventora de televisão - e eu recuso-me a colocar a televisão ao mesmo nível da arte cinematográfica!Mas mesmo assim, e até atentando ao que posteriormente a senhora faria, por exemplo nas fotografias turísticas da Núbia, forçoso é reconhecer que o seu corpo a corpo é uma construção ideologicamente determinada. É o oposto do esse sim deslumbrante corpo a corpo de Eisenstein no inacabado "Que Viva México!", comparação tanto mais saliente quando esse projecto não estaria isento de alguma digressão turística-revolucionária.Ao ler o texto de ontem de João Lopes, encontrei, em abono de Riefenstahl, a evocação de uma "beleza convulsiva" e ocorreu-me então que era justamente isso que me fazia recordar "Que Viva México!" como oposto: pode haver imagens pontuais de sofrimentos de atletas em "Os Deuses do Estádio", "beleza convulsiva" é justamente o que de todo não se me afigura em coisa alguma que Riefenstahl tenha feito. Já agora, não deixo de achar interessante que o João, que não referia o texto de Susan Sontag, "Fascinante Fascismo", sobre as tais fotografias núbias, colocasse uma questão muito "sontaguiana": "importa reconhecer (e interrogar) o facto de haver uma Riefenstahl 'em nós'".Falei no início deste texto em "questões... imagéticas". Não serão só as teledesportivas. A alguém que um dia destes me perguntou se eu iria escrever sobre Riefenstahl, disse que não sabia (ainda) e que a senhora, além de todos os problemas éticos, estéticos e políticos mais evidentes, também me colocava outros, menos óbvios mas talvez mais perenes e perturbantes que posso colocar assim: Calvin Klein não descenderá de Leni Riefenstahl? As representações do corpo, a norma mesmo, sobretudo instituída na publicidade, não procedem da glorificação ariana de que Riefenstahl foi grã-sacerdotisa? Vasta e perturbante questão, há que convir...

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