40 anos da marcha cívica nos EUA: O sonho incompleto de Martin Luther King
A 28 de Julho de 1963 o reverendo Martin Luther King Jr. pronunciou um dos mais memoráveis discursos do século XX. Perante mais de 250 mil pessoas reunidas em Washington, King falou do seu sonho de uma América fraterna e livre do racismo. As palavras já na parte final do seu discurso - "I have a dream" - tornaram-se no símbolo da luta pelos direitos cívicos nos anos 60.Agora, quatro décadas depois, o apelo de King está em parte cumprido na América. No Sul, não há mais casas de banho "para brancos" e"para negros"; os casamentos interraciais não são crime nem pecado; o discurso da supremacia da raça branca tornou-se minoritário e marginal. O racismo institucionalizado, o das leis segragacionistas "Jim Crow", acabou. Mas o sonho não foi completamente concretizado.A questão racial na América não está resolvida. Os negros continuam a ser os americanos mais pobres, com pior acesso à educação e com uma probabilidade desproporcional de ir parar à cadeia (um terço dos homens negros nos EUA passarão pela prisão ao longo da sua vida) ou de ser condenados à morte.No fim-de-semana passado, o discurso de 1963 foi recordado numa cerimónia pública junto ao monumento a Lincoln onde King revelou o seu sonho. Estiveram presentes a viúva de King, Coretta, o seu filho mais velho, Martin Luther King III, um dos co-oradores de King, John Lewis, e líderes actuais da comunidade negra como Al Sharpton ou Jesse Jackson."Apesar do progresso que fizemos nas últimas quatro décadas, as pessoas de cor ainda não têm uma parte justa das oportunidades de emprego ou de educação na nossa sociedade", disse Martin Luther King Jr. "O meu pai era mais que um sonhador. O sonho glorioso que o meu pai partilhou conosco não era apenas um exercício em oratória eloquente. Antes de tudo devemos lembrar-nos que Martin Luther King Jr. era um ministro de acção."Mark Potok, porta-voz do Southern Poverty Law Center (SPLC, um importante grupo activista dos direitos civis do Sul dos EUA), disse ao PÚBLICO que "ainda não se chegou ao topo da montanha de que King falava": "Não há dúvida de que o nosso mundo é melhor. Mas nos últimos 20 anos as coisas voltaram atrás em certa medida. Há uma nova segregação, residencial, económica, educacional."O problema é que a questão racial nos EUA hoje não é tão clara como no tempo de King. Nos anos 60, havia uma estrutura política segregacionista e violenta, organizações como o Ku Klux Klan praticavam o terror contra negros, os sinais do ódio e do racismo eram omnipresentes no Sul. Os esforços de King e outros activistas negros levaram a grandes reformas políticas, sobretudo a aprovação das leis de direitos civis durante a Administração de Lyndon Johnson.Hoje a questão racial é mais subtil, e a causa dos direitos civis mais difícil de definir. O que faz com que mesmo a comemoração do discurso de King não seja um evento de unidade."Aquilo não foi um protesto social, foi uma arengada política. Não teve nenhuma semelhança com o que aconteceu há 40 anos", disse ao PÚBLICO Ron Innis, presidente da CORE, uma das mais antigas organizações de direitos civis dos EUA, referindo-se à manifestação do fim-de-semana passado. Innis esteve em Washington em 1963, mas recusou-se a participar desta vez.Innis, como outros líderes negros, criticou o tom da celebração. "Não tinha um foco, não tinha um objectivo, não tinha a integridade do movimento nos anos 60. Vou-lhe dar um exemplo: pelo menos cinco oradores falaram em transferir a liderança do movimento para a comunidade hip hop. Esse disparate não é activismo. Ainda bem que os negros se recusaram a ir."Com efeito, a reunião de Washington deste ano teve poucas dezenas de milhares de pessoas. A maior parte dos presentes pertenciam a uma salada de organizações políticas com agendas muito variadas - de defesa dos direitos civis mas também de defesa dos direitos "gay", ecológicas, contra a guerra no Iraque, etc.Um dos políticos que falou em Washington na semana passada, Jesse Jackson, declarou: "Para muitos, o sonho continua no mundo da imaginação. A promessa [desse sonho] implicava um orçamento para erradicar a debilitante pobreza em que muitos afro-americanos viviam. Hoje, 40 anos depois, o grito mantém-se: cumpram essa promessa."Mas Ron Innis critica precisamente a atitude de Jackson. "Os 'media' dão uma atenção exagerada aos líderes que agem como se nada tivesse sido ganho nas lutas dos anos 50 e 60, aqueles que recusam reconhecer que muitos elementos do discurso de King foram cumpridos.""O racismo aberto acabou, os políticos brancos já não fazem campanhas ostensivamente racistas", continua Innis. "King foi profético. Ele conseguiu fazer a maior revolução social pacífica da história do mundo num período de tempo muito curto, com muito pouca violência."As batalhas do movimento de direitos civis travam-se hoje em campos diferentes dos do tempo de King - em questões como a discriminação positiva, a igualdade económica, o acesso à justiça e à educação. Além disso, nos anos 60 a raça na América era uma divisão clara entre negro e branco; hoje, os EUA são ainda mais multi-raciais, e o mosaico étnico americano não é completamente fraterno."Os interesses dos vários grupos étnicos minoritários não são todos iguais", diz Mark Potok, do SPLC. "Julgo que haverá no futuro um conflito entre negros e hispânicos - os asiáticos são um caso especial, porque têm em geral melhores níveis educativos e económicos. Mas há movimentos supremacistas negros, dirigidos não apenas contra brancos mas também contra hispânicos. Penso que há muito claramente um conflito em gestação entre negros e hispânicos."