Memória da Cidade

Em 1896, num artigo que veio a tornar-se célebre, o investigador portuense Francisco de Sousa Viterbo afirmava o seguinte: "[...] exceptuando os descobrimentos maritimos, em que me parece haver-se concentrado toda a actividade [do povo português] - dizia -, não me recordo de nenhum invento português que ficasse marcado assinaladamente nos anais da ciência ou da indústria".Sousa Viterbo tinha - e ainda tem - plena razão. De facto, apesar de raramente ser apontada, uma das causas que contribuiu para o nosso atraso radica no facto de Portugal ter perdido a revolução científica e técnica que percorreu a Europa nos séculos XVI e XVII, uma vez que esta constituíu uma das condições fundamentais para o sucesso do subsequente processo de industrialização. No entanto, como que a comprovar que há sempre excepções, Sousa Viterbo não referiu o caso de Adriano de Paiva, então lente de Física da Academia Politécnica do Porto que, em 1878, tinha proposto a aplicação do selénio na transmissão de imagens à distância, o qual, verdadeiramente, consistia no sistema precursor da televisão. Mas, naquela época, Sousa Viterbo também não o poderia ter referido, pois só muito mais tarde se pôde avaliar o verdadeiro significado da descoberta de Adriano de Paiva, cujo reconhecimento tem vindo a ser salientado nas últimas décadas por diversos autores - entre os quais, o Prof. Manuel Vaz Guedes, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto -, retirarando assim do anonimato um personagem cuja importância no domínio da história da televisão é hoje em dia plenamente reconhecida na comunidade científica internacional.Adriano de Paiva de Faria Leite Brandão nasceu em Braga em 1847 e veio a falecer no seu palacete de Vila Nova de Gaia em 1907. Aos 14 anos matriculou-se na Universidade de Coimbra onde obteve o grau de bacharel pelas Faculdades de Filosofia e de Matemática (convertidas na Faculdade de Ciências após a implantação da República) e, em 1868, o doutoramento com uma tese intitulada "Geologia. Apreciação do Sistema das Causas Actuais". Em 1872 foi nomeado professor da Academia Politécnica do Porto, com a responsabilidade pela 9ª Cadeira (Química). Seguidamente, com a tese "Exposição dos Princípios Fundamentais da Termodinâmica", conquistou a Cadeira de Física, em concurso de provas públicas que realizou com grande brilhantismo. Durante o ano lectivo de 1877-78 leccionou a Cadeira de Física Teórica e Experimental, tendo sido durante este período que começou a desenvolver a sua investigação sobre a telescopia eléctrica.Em 1881 Adriano de Paiva foi nomeado membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Foi também membro associado do Instituto (de Coimbra), assim como membro fundador - e perpétuo ! - da "Société des Electriciens de Paris", tendo sido presidente da sua Secção Portuguesa. D. Luís atribuíu-lhe em 1887 o título de Conde de Campo Belo e nomeou-o Par do Reino.De acordo com a sua biografia, publicada por André Lange, o interesse de Adriano de Paiva pela telescopia eléctrica ter-se-á iniciado com chegada a Lisboa, em Novembro de 1877, da notícia da primeira demonstração prática do telefone de Graham Bell, a qual, tal como tinha acontecido cerca de um ano antes quando essa mesma descoberta do inventor norte-americano tinha sido divuldada entre nós, suscitou um profundo interesse na opinião pública. Ao ter conhecimento da possibilidade prática de se transmitir o som à distância o professor da Academia Politécnica ter-se-á interrogado sobre idêntica possibilidade de se encontrar um sistema equivalente para a transmissão de imagens animadas.Ainda segundo aquele estudioso da obra de Adriano de Paiva, a originalidade do investigador portuense não consistiu em conceber aquela hipótese que, como é vulgar em ciência, poderia ter sido equacionada por diferentes investigadores a trabalhar num mesmo tema e sem contactos entre si - como, de facto, chegou a acontecer com o seu contemporâneo Louis Figuier -, mas sim na sua proposta de utilizar o selénio como placa da câmara escura do telectroscópio.Apesar do interesse que Adriano de Paiva manifestou sobre esta possibilidade de transmissão de imagens animadas à distância - ao qual dedicou vários estudos, entre os quais, "La téléscopie électrique basée sur l'emploi du sélénium" (Porto, 1880) -, o físico portuense nunca desenvolveu qualquer experiência prática no sentido de tentar verificar a hipótese que tinha equacionado. Segundo o Professor Vaz Guedes, citado por A. Lange, "é muito simplista considerar que tal atitude provinha do facto dele não dispor de meios técnicos que lhe permitissem realizar experiências com base nas suas hipóteses. Como professor de Física da Academia Politécnica do Porto, tinha acesso ao Gabinete de Físca onde teria a possibilidade de realizar essas experiências. O seu desinteresse pela experimentação deverá procurar-se na sua formação coimbrã, mais orientada para a especulação teórica característica da Filosofia Natural do que para a Física Experimental".A reivindicação do primado da ideia sobre a possibilidade de transmissão de imagens animadas à distância foi levada a cabo pelo próprio Adriano de Paiva, logo em 1880, no seu trabalho atrás referido, cujo texto se apresentava traduzido em francês e inglês. Ainda no século XIX a hipótese de Adriano de Paiva foi também por diversas vezes salientada por diversos autores, nacionais e estrangeiros (embora alguns não lhe reconhecessem a prioridade da ideia), e ainda no início do seguinte, pelo menos até 1922. Daí para diante, tanto quanto foi possível apurar, o nome de Adriano de Paiva e a sua tese sobre a aplicação do selénio deixou de ser referida na literatura da especialidade.Foi necessário aguardar pelo ano de 1967 para o investigador alemão Walter Bruch - e inventor do sistema PAL - recuperar a memória deste ilustre físico portuense, e da sua actividade percursora, aquando de uma conferência que em Junho daquele ano proferiu na Universidade de Lisboa. Desde então, não só ficou consagrada a autoria da proposta de Adriano de Paiva de aplicação do selénio à transmissão de imagens à distância, como o mesmo passou a ser referido em todas as obras clássivas sobre a história da televisão.

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