Durante anos, Gradisca - a verdadeira, não a do filme - exigiu dos tribunais a defesa da sua reputação, argumentando que a mulher que em "Amarcord" usava a sua alcunha e exibia uma sensualidade opulenta nada tinha a ver com ela, que não tinha ido "para a cama com ninguém antes do casamento". Foi um dos equívocos criados por uma obra tão pessoalíssima e confessional como a de Federico Fellini, a ponto de nela se tornar difusa a fronteira entre criação e autobiografia: Gradisca, a verdadeira, imortalizada pela actriz Magali Noel, confundiu recriação com realidade, sem perceber que o filme era uma tentativa de o realizador acomodar os fantasmas da sua infância em Rimini. "Não me arrisco a considerar Rimini como um facto objectivo", escreveu Fellini em "La mia Rimini". E assim foi.
"Amarcord" é um filme com 30 anos, mas não parece. Vai ser reposto, a partir de hoje, em cópia nova, efeméride "oblige": "il maestro" morreu há dez anos, a 31 de Outubro de 1993. A abertura oficial dos tributos foi decretada no último Festival de Cannes, que lhe dedicou uma retrospectiva, acompanhada da apresentação de dois documentários inéditos - "Ciao Federico!", de Gideon Bachmann, "making of" instrutivo sobre os métodos de trabalho de Fellini, rodado durante as filmagens de "Satyricon" (1969), e "Fellini: je suis un grand menteur", resultado de uma longa entrevista dada a Damian Pettigrew nos anos 80.
Incentivos, portanto, para proclamar, como o "Libération", "Fellini Forever", mesmo que noutro diário francês, "Le Monde", o italiano Paolo Mereghetti diga que Fellini foi traído por Itália e pergunte: que resta hoje do espírito felliniano no seu país de origem, mergulhado na complacência do berlusconismo vulgar?É a pergunta que se pode fazer num sentido mais lato, agora que um mundo decididamente menos felliniano se pepara para o (re)descobrir: que resta hoje do espírito felliniano?
nem verdade, nem mentira. Provavelmente, não há melhor altura do que o Verão para (re)ver "Amarcord", filme tão associado à infância como as férias grandes. Ainda se lembram de quantos anos tinham quando deixaram de ser crianças? É a pergunta deixada em suspenso por "Amarcord", revisitação felliniana da infância na sua Rimini natal, rememoriação imaginada, nem verdade nem mentira ou, antes, a verdade do seu autor.
"Diante da objectiva, o realizador só se mete a si mesmo", dirá, numa longa entrevista a Giovanni Grazzini em 1983, editada em livro como "Fellini por Fellini". E também: "Mas que queres tu que pensasse um rapazinho que vivia na província, com a família, com o fascismo, a igreja, o cinema americano e, no Verão, à beira-mar, as alemãs em fato de banho? Não tenho grandes recordações e depois despejei tudo nos filmes que fiz. Entregando-os ao público, apaguei as minhas recordações e agora já não sei distinguir o que aconteceu na verdade e o que inventei." Gradisca acabou por lhe perdoar.
Rever "Amarcord" hoje é confrontar-mo-nos com a memória do filme. Não é filme para o qual se vá sem inquietação, por já não saber distinguir o que aconteceu na verdade e o que se inventou - de resto, como qualquer outro que tenha deixado marcas anos atrás e no qual, anos mais tarde, podemos ou não reconhecer-nos. É um desses filmes em que a grandeza de algumas cenas perdura, confundindo-se com o filme todo, à medida que a memória se vai esbatendo. Caso para perguntar: e você, ainda se recorda de "Amarcord"?
Prepare-se, então, para o reencontro com um velho amigo, mesmo que lhe note imperfeições. Fellini sempre foi mais poeta do caos do que da ordem, mas do turbilhão de memórias e personagens que desfilam em "Amarcord" (no dialecto romano significa "recordo-me") o que fica é um fresco da adolescência, delicado e afectivo, de alguém que recusa crescer. Porventura, não há melhor forma de começar a vasculhar no baú felliniano: para lá da evocação da infância na Rimini dos anos 30, é um filme sobre a infância "tout court", e que, nesse sentido, pode agir por si próprio e exercer o seu fascínio, independentemente do que o tempo fez com ele ou de conservar a memória de uma Itália perdida.
"Oito e Meio" (1963) pode figurar, inabalável, nas listas do costume sobre os melhores-filmes-de-sempre-do-costume, mas também pode ressurgir, hoje, como um Fellini "poseur" que converteu a sua divagação e vazio criativos em matéria de filme. E se "Amarcord" não deixa de contribuir para o panteão de personagens excessivas e disformes - numa palavra, fellinianas -, há nele uma inocência que o afasta do exibicionismo (por vezes, sádico) de monstros de atracções como em "Julieta dos Espíritos" (1965) ou "E la nave va" (1983). "Fellini por Fellini", de novo: "Quando rapazinho, na barraca do circo, olhava as coisas encantado; agora a barraca pertence-me, determino-a, provoco-a."Pode dizer-se que em "Amarcord" não há tanto personagens quanto figuras caricaturais, "clowns" prontos a servir a máscara - era pelo rosto que Fellini escolhia os seus actores, tratando de lhes sublinhar as características através da caracterização e do guarda-roupa. Há mesmo no filme figuras, como a freira anã, que já vêm de trás, de "I Clowns" (1970), cuja primeira parte é uma espécie de esboço de "Amarcord", onde Rimini é largamente evocada.
Em todo o caso, estamos no território do "gag", o que justifica a caricatura, ainda para mais tratando-se da recriação de uma Itália beata, provinciana e sob o jugo do fascismo. E Fellini manipulador de marionetas tem, pelo menos aqui, a caução de demiurgo a intervir no jogo de manipulação da retórica fascista. Se "Amarcord" é um filme sobre a infância, correspondendo ao olhar do adolescente Titta (personagem central, em relação ao qual o filme pode ser visto como uma espécie de itinerário que termina com a sua chegada à idade adulta), este nunca tem como contraponto o mundo dos adultos porque até os adultos se portam como crianças. Objecto cândido, sim, mas não ausento de crítica, por via da paródia: a admiração histérica de Gradisca perante a parada fascista ou a longa espera para assistir à breve passagem do transatlântico Rex, espécie de jóia da coroa do regime, são disso exemplo.
Entre o fascínio e o repúdio, Fellini traça o quadro da Itália de Mussolini, na qual cresceu, não sob o fundo ideológico, mas como ilusão colectiva que parece prender todos numa regressão infantil. Período, aliás, que o próprio Fellini confessou ter vivido "enquanto testemunha divertida, emocionado mais do que empenhado". E quando Itália se converteu à democracia, declarou, lucidamente, em Março de 1974: "O fascismo é qualquer coisa que está em nós, que permanece sempre connosco e que nos instiga a sermos tolos de forma a sermos mais fortes".
Não "eles", mas "nós": "Amarcord" é Fellini - de quem Orson Welles chegou a afirmar que "os seus filmes são o sonho da grande cidade de um rapaz de província", certamente apontando a "La dolce vita" (1960) - a reconhecer-se parte do mapa humano dessa Itália provinciana, ao lado da sua galeria de personagens, e não a olhar para elas de cima. Ainda não se falou da história de "Amarcord", até porque, objectivamente, não existe senão o livre curso da memória, com a narrativa a seguir atrás das personagens e a ser empurrada pela sucessão de quadros, ligados entre si pelo olhar do jovem Titta, alguns deles memoráveis. Desafia-se qualquer espectador a sair de "Amarcord" imune à corrida das Mil Milhas, ao encontro de Titta com a esmagadora tabaqueira, à belíssima sequência em que o transatlântico surge do nevoeiro, por breves instantes, para voltar a desaparecer, promessa de grandeza de um regime, pura ilusão, sonho. Houve quem sugerisse que o filme é um documentário sobre o nevoeiro e a hipótese não parece tão descabida assim. Só Gradisca, aparentemente, nunca acreditou em visões.