Sinais de fogo
Eis alguns sentimentos dispersos, sem nenhuma sistematização nem pretensão de ciência, proporcionados por esta terrível semana de fogo. 1 - Todos temos direito a férias, a mergulhar na água e no esquecimento um ano sem tréguas, como todos os outros. Queremos bom tempo, um sol que queima, uma água que envolve e limpa. Mas, como esquecer tudo, como desejar o sol e mergulhar na água sem preocupações, quando, atrás de nós, metade de Portugal arde em fogo de inferno e milhares de portugueses lutam sem tréguas para defender o que é seu, as suas vidas e a sua forma de vida? 2 - É impossível não ficar impressionado pelas imagens daquela gente. Os bombeiros, exaustos, dormindo em pleno alcatrão, junto aos carros, às primeiras luzes da manhã. Os soldados da GNR, mostrando o lado melhor da sua função, que é o do combate à solidão e ao isolamento das populações rurais, arriscando a sua segurança para resgatar ao fogo os que não querem abandonar as suas casas. As populações - jovens, adultos e sobretudo velhos - lutando com "caterpillars", mangueiras, enxadas, baldes e ramos, em defesa das suas casas, dos seus quintais, das suas árvores, dos seus animais. E também os autarcas, ao lado das populações, olhando as chamas e o céu, em desespero de um avião. Percebemos de repente que nem tudo está morto, num país que se diria tantas vezes letárgico. Há quem lute até ao fim, sem esperar que seja o Estado a vir salvar o que é seu. Catorze portugueses morreram até agora, neste combate heróico. 3 - Mas a ocasião é também propicia a demagogias. Um senhor já de idade, de balde na mão, defendia a sua casa das chamas que já tinham chegado ao quintal, enquanto desabafava para uma câmara de televisão que "gostaria de ver aqui esses intelectuais de meia-tigela". Mas os intelectuais de meia-tigela não poderiam ter resolvido o problema particular que as imagens mostravam: um quintal ao abandono, com o mato crescido e pilhas de madeira esquecidas no chão. Mais de metade dos 500.000 proprietários florestais do país têm os seus terrenos assim, ao abandono. E, quando ardem, a culpa é dos políticos ou dos intelectuais de meia-tigela. 4 - Arde aquilo que está abandonado. Arde o Portugal que desapareceu, o Portugal que foi desertificado pela reforma da PAC dos anos noventa e por sucessivas políticas de planeamento territorial que fizeram morrer aldeias e comunidades rurais e nascer Brandoas e subúrbios marginais. Ribeiro Teles disse-o há muitos anos: se matarem a agricultura e a pastorícia, matam Portugal. Mas ainda há quem faça a capa da revista do "Expresso", com o rótulo de "empresário ambientalista", porque, movendo influências políticas, fez uma urbanização na zona da Reserva Agrícola, junto à Ria Formosa, no Algarve. Há sempre uma excepção, um "projecto estruturante", um caso "de interesse público". É a política do "só mais um", que, um a um, vem mudando a paisagem e a estrutura física e social do país nas últimas décadas. Abre-se a excepção a montante a paga-se a factura a jusante. 5 - E arde o Portugal que quis confundir serra com floresta e floresta com pinheiros e eucaliptos. Nos anos cinquenta, quando Salazar mandou florestar o Marão, os pastores corriam de noite pela serra com tochas a arder e pegavam fogo a tudo: defendiam as pastagens dos seus rebanhos, o seu modo de vida. Hoje, já não há rebanhos nem pastores (que eram os melhores vigilantes contra os fogos), não há agricultura nas encostas e vales, não há cursos de água permanentes nem fontes, não há árvores folhosas, não há humidade nos solos, não há populações residentes nas serras (excepto os estrangeiros que compram aldeias inteiras desertas), não há vida na serra. Tudo foi secado pelos eucaliptos e pelos pinheiros, o "nosso petróleo verde", como dizia Mira Amaral. Outros, e em obediência a outros interesses, deitam fogo à serra ou ela própria arde por si, reunidas as condições ideais de combustão. Seria de esperar outra coisa? 6 - No meio das chamas, um senhor da Liga da Protecção da Natureza lembrou-se de propor que fosse cancelada ou adiada a próxima época de caça. Como se houvesse caça no eucaliptal ou no pinhal, onde não há coberto vegetal, não há sementeiras, não há comida e não há água! Já atravessei várias vezes a serra de Monchique e a serra de Ossa, inteiramente cobertas por eucaliptos, e nunca vi um coelho a correr nem ouvi cantar um pássaro. Pelo contrário, se o senhor se der ao trabalho de ir ver com atenção, estou certo que descobrirá que poucas são as reservas de caça bem mantidas que arderam. Primeiro, porque é diferente a estrutura vegetal, depois, porque são vigiadas, mantidas, limpas, são feitas sementeiras que cortam a continuidade do mato, estão abertos os caminhos e os corta-fogos e estão mantidos os pontos de água. Mas o país que nada percebe do assunto vai achar com certeza uma excelente ideia fazer os caçadores pagar pelos fogos (e, a propósito, este ano não há touros de Barrancos?) 7 - Diz o director da PJ que 30 por cento dos fogos desta semana tiveram mão criminosa. É um número razoável, fora das habituais especulações delirantes que costumam apontar para 90 por cento ou cem por cento. Pessoalmente, sempre desconfiei de explicação tão simples e desculpabilizante. É como as explicações que insistem em impingir-nos de que o excesso de velocidade é o responsável por todos os acidentes nas estradas: nunca é a má sinalização e a má condução, potenciada por um ensino incompetente, por uma avaliação corrupta e por um sistema de repressão que persegue a infracção e não o sinistro. O mesmo com os fogos: se são todos fogos postos, ninguém tem culpa e não há nada de radicalmente diferente a fazer, senão esperar que arda e esperar que se apague. 8 - Em todo o caso, fogo posto ou não, é difícil de entender por que não pode ele ser previsto e vigiado na origem, antes de tomar proporções incontroladas. Não é só obrigar os proprietários e o próprio Estado a manterem as suas propriedades florestais em condições. É também perguntarmo-nos porquê que, enquanto o país arde, se juntam todos os ex-chefes do Estado-Maior do Exército em conspiração contra o ministro da Defesa, mas nem um só se lembra de propor que os 20.000 efectivos do Exército sejam destacados todos os anos para o terreno, para fazerem vigilância, abrir caminhos, defender as populações e ajudar os bombeiros na retaguarda, em lugar de ficarem nos quartéis a servir almoços e "bicas" aos oficiais. Ou o Exército não tem por missão defender o território? Se serve para o Kosovo ou para o Iraque, não serve para Portugal? E porque temos nós de pedir ajuda aérea à NATO, à Itália, a Marrocos, quando temos vinte F-16, cada um deles custando o mesmo que dez aviões de combates a fogos, encostados porque não há pilotos? E os mais de duzentos milhões de contos que vão ser gastos em dois submarinos destinados a combater um inimigo invisível e um perigo inexistente, quando afinal o perigo é real e está cá dentro: é a poluição das costas, a pesca ilegal dos espanhóis, as lanchas dos contrabandistas de droga, os incêndios? 9 - Pois, não é a hora para pedir responsabilidades políticas. Nunca é a hora, quando será a hora? E, pensando bem, seria injusto exigir por junto a cabeça do manifestamente incompetente ministro da Administração Interna. Que mal fez ele que não fizesse outro qualquer que não tenha o beneplácito do Governo, dos sucessivos governos e das suas políticas instaladas? O primeiro-ministro não afirmou no mês passado que o nosso futuro, quase todo o nosso futuro, assenta no turismo e no turismo tal qual o temos? Para que serve então o interior do país, se não para plantar pinheiros e eucaliptos e vê-los arder, quando as coisas correm mal? Aliás, como notou Jorge Sampaio, a culpa dos incêndios é fundamentalmente do calor. Do calor, dos ventos, da ausência de humidade. Da natureza, numa palavra. Raios partam a natureza!