Quem disse "Hamlet"?
Um Hamlet a maisUm espectáculo de Ricardo PaisPorto, RivoliTalvez que a nossa condição pós-moderna se faça incessantemente da elaboração de paródias e palimpsetos. O acumular das memórias, a prossecução sistemática do jogo das referências, a ultrapassagem das delimitações de campos estritos, enfim, a própria vivência voraz do tempo e das tecnologias conduzem-nos quantas vezes a estados continuamente "reloaded". Mas se assim é, qual a legitimidade de ainda invocar como sendo os próprios objectos aqueles que eventualmente alteramos e inflectimos em objectos outros? "Um Hamlet a mais", o novo espectáculo de Ricardo Pais, que agora esteve em cena no Rivoli, é inquestionavelmente uma "variação sobre" e mesmo uma "interpretação" do "Hamlet" de Shakespeare. É liminarmente um espectáculo "pós". É-o no estrito plano cronológico porque sucede a uma outra encenação, do texto canónico. É-o no mais lato plano cultural porque se radica numa estratégia paródica eminentemente pós-moderna. O tradutor, António M. Feijó, e o próprio encenador, procederam a uma montagem do texto, reduzindo-o, alterando a ordem das cenas, deslocando falas de uma cena para outra ou até de uma personagem para outra. Na proposta, de modo algum em si mesma ferida de ilegitimidade, importa verificar quatro coordenadas gerais. A primeira é a construção em "flash-back"; espectáculo inicia-se com extractos das duas últimas cenas, estabelecendo circularmente o "desfecho" da acção e um "prólogo" ao "flash-back", que assim então ocorre ser a fala de Horácio, "assim falarei dos actos aberrantes e carnais (...) tudo poderei em verdade contar". A segunda, que na primeira já está presente, é que o duelo final é a matriz que organiza o espectáculo. A terceira é que a cena final encadeia com a última do Acto I, aquela entre Hamlet e o fantasma do pai. A quarta é a tendencial confluência numa única figura, a Mulher, com uma mesma intérprete, de Gertrud e Ofélia, à custa da última personagem, numa enunciação atrozmente misógina. Em particular o último ponto acaba por se prender com uma caracterização geral da leitura. A melancolia de Hamlet é diluída no que se pode designar o "arqui-texto" de uma "tragédia da vingança". À operação de redução assim engendrada, que se poderia enunciar como "Um Hamlet a menos", corresponde uma outra de constituição de invólucros. No suplemento Y da passada semana, o protagonista, João Reis, dizia: "este é talvez o 'Hamlet' que Ricardo Pais gostaria de ter feito da outra vez e não pôde". Não cabe averiguar factualmente, mas a vincada vocação do encenador para objectos marcados pela transversalidade dos materiais e pelas incorporações tecnológicas tenderá em principio muito mais a um artefacto como este que a aproximação mais canónica como a anterior encenação. Só que assim sendo, "Um Hamlet a mais" é uma caricatura de Ricardo Pais, tal a espantosa iniquidade das suas roupagens "modernaças" e a indignidade do novo-riquismo de exibição do aparato.A cena está recoberta por quatro telas que podem sugerir um aquário como serem cortinas de projecção. O eminentemente cinematográfico princípio do "flash-back" seria supostamente prosseguido por uma não menos cinematográfica utilização de imagens aproximadas dos actores, que aliás os dados desconfortáveis da sala do Rivoli tanto mais podiam aconselhar; pois, está bem, de vez em quando, em imagens anónimas e arbitrárias! Espectáculo também musical, tende ele a uma possibilidade de "ópera-rock", como aliás o sugere o cartaz, mas sem qualquer correspondência, com o intérprete de Hamlet e uma guitarra? Pois, está bem, de vez em quando, talvez pudesse ser...E etc, talvez que isto ou antes aquilo...Há uns versos, e creio que são só esses, que ocorrem não uma mas duas vezes: "É agora aquela bruxuleante hora da noite/Em que cemitérios bocejam e o inferno exala/Contágios na terra" (Acto III, cena 3). Será involuntário, mas "The very witching time of the night" é a praga que bloqueou este espectáculo.