Fernando Abrantes: I was a robot
Em 1991 o português Fernando Abrantes integrou os Kraftwerk e andou em digressão com a mítica banda alemã. Mais tarde abandonou o projecto, mas desvendou ao Y todos os mistérios de um dos maiores ícones pop das últimas décadas.
Anda de um lado para o outro, frenético. Fernando Abrantes, engenheiro de som e produtor, actualmente um dos responsáveis pelos destinos dos estúdios MDL, está a ultimar as misturas do novo álbum de Luís Represas e não tem tempo a perder. Ao longo dos anos tem sido assim. Estudou engenharia de som na Alemanha, montou um estúdio vocacionado para a publicidade em Portugal, criou o estúdio da Strauss em 1991, levou Anabela ao Festival da Canção em 1993, produziu ou co-produziu uma série de álbuns (de Paulo de Carvalho à “Operação Triunfo”). Gravou um álbum a solo em 1999, “Two Faces”, e tem também seis discos gravados sob pseudónimo.
Em 1991, recebeu um convite surpreendente. Fazer parte da formação dos Kraftwerk, o mítico grupo alemão criador de conceitos pop que continuam a fascinar gerações. O teclista Karl Bartos havia abandonado o projecto, que se preparava para empreender a sua terceira grande digressão pelo Reino Unido, e para completar o quarteto foi escolhido Abrantes. Um das novidades dos cerca de 15 concertos onde o português interveio foi a introdução de novos robôs no conceito visual. Foram criados 4 robôs com as feições de cada um dos membros, providos de membros móveis e controlados pelos músicos, remotamente. Depois da saída de Abrantes, os Kraftwerk estabilizaram a sua formação com Ralf Hutter, Florian Schneider, Fritz Hilpert e Henning Schmitz. Foi esse quarteto que acabou de lançar o álbum “Tour De France – Soundtracks”.
Como é que se deu a sua entrada nos Kraftwerk?
A minha mãe é alemã, estudei engenharia de som 7 anos em Düsseldorf e foi aí que conheci o Fritz Hilpert, hoje em dia um dos principais membros dos Kraftwerk. Ele é também engenheiro de som, é responsável por “disparar” o computador central e toca percussões electrónicas no grupo. Erámos amigos e colaborámos em alguns projectos. Em 1991, já eu estava em Portugal, recebi um telefonema dele a perguntar-me se queria fazer um “casting” para substituir o Karl Bartos, que era o teclista principal. Já tinha aqui a minha vida, tinha nascido a minha primeira filha, mas lá fui ter com eles. Pagaram-me um bilhete de avião, gostaram de mim e ficou decidido que iria integrar a formação do grupo na digressão por Inglaterra nesse mesmo ano.
O que fazia nessa altura em Portugal?
Era engenheiro de som e produtor independente. Quando recebi o telefonema estava a acabar de misturar a “Comédia Humana” dos UHF. Na Alemanha correu tudo bem, regressei, fiz a malas, e uma semana depois estava em Düsseldorf a ensaiar.
Ficou surpreendido com o convite?
Sim, porque não percebia porque é que não tinham encontrado ninguém na Alemanha. Depois percebi... São muito metódicos a funcionar, têm uma filosofia de trabalho muito própria e a inserção num projecto daqueles não é fácil. Começávamos a ensaiar às 10h e só acabávamos à noite. Têm uma vida regrada. São desportistas, nada de álcool, vegetarianos. Eram super profissionais e muito bem organizados. Estivemos a ensaiar arduamente um mês e depois entrámos em digressão.
Esses métodos de trabalho dificultavam a comunicação?
Um pouco. Com o Ralf [Hutter] e o Florian [Schneider], também pelo facto de serem de outra geração, era mais difícil. Tinha que seguir uma espécie de protocolo. Durante a digressão a atitude em cima do palco era imposta. Hoje em dia dou-lhes razão, porque o projecto é assim, mas na altura tivemos algumas polémicas. A forma de estar em cima do palco é distante. Apesar de terem sucedido situações fantásticas como na Brixton Academy. Cada um tinha o seu sequenciador, íamos para a frente do palco e deixávamos o público interagir connosco.
Consta que, por vezes, actuava contra as directivas que exigiam que estivessem imóveis e com expressões impassíveis em palco. É verdade?
Sim. Isso acontecia, por exemplo, no “Pocket calculator”, que era a música que levávamos nos sequenciadores para a frente do palco. Era a pessoa que mais interagia com a assistência. Tinha a ver com a minha formação. Quando vejo que o público está a aderir penso que o músico tem que comunicar com ele. Quebrar barreiras. Eles não gostavam e o Ralf chamou-me a atenção, muitas vezes, para não fazer determinadas coisas. A minha componente latina nem sempre foi compreendida...[risos].
Existia um conceito muito rígido de funcionamento, uma imagem a manter. Antes dos concertos era-lhe explicado os objectivos a atingir com essa atitude?
Sim. Não fui apanhado de surpresa. As coisas eram faladas abertamente. Eram pessoas excelentes, tínhamos uma boa relação, apesar de algumas incompatibilidades. No final da digressão foi-me comunicado que iriam arranjar um outro teclista – por acaso meu amigo, o Henning Schmitz. Mas o que me impediu de continuar com eles foi o facto de eu ter a minha vida organizada em Portugal.
Os Kraftwerk são um mito da pop. Ao longo da digressão sentiu isso?
Sem dúvida e isso notou-se logo no primeiro espectáculo. Mal abriu o pano a berraria foi de tal ordem que tivemos que pedir ao técnico de munição para subir o nível geral do som. O som que havíamos experimentado no “sound-check” já não dava para nos ouvirmos em palco. A forma como éramos recebidos era indescritível.
Recorda alguma história engraçada desse tempo?
Uma vez perdi a mala – deixei-a no hotel. Já estávamos noutra cidade e em poucas horas resolveram-me o problema. É uma história que serve para ilustrar a excelente organização que nos rodeava. Tínhamos um excelente “tour manager”, o Buckley, que na altura trabalhava com os U2. Todos os dias dava-nos um folheto com toda a informação necessária. Foi um digressão exemplar em termos de organização. A equipa técnica era toda alemã e conseguia montar todo o espectáculo em hora e meia. E estamos a falar de um dos espectáculos mais sofisticados de sempre do ponto de vista técnico. Nada falhava. Quer dizer, quase nada... Recordo-me do computador central ter falhado uma vez, mas ninguém deu por nada...[risos].
Num espectáculo desse género existe espaço para a improvisação?
Algum, numa ou noutra música, mas era limitado, em termos de espaço e de sequência. Essencialmente tocava as linhas de baixo, fazia toda a parte harmónica e os solos. O Ralf, essencialmente, cantava. O Florian comandava tudo o que tinha a ver com caixas de ritmos e efeitos especiais. E o Fritz, nessa altura, tocava percussões electrónicas e lançada tudo o que tinha a ver com o computador central.
Criou-se a ideia que aquilo que impedia o grupo de produzir coisas novas era o facto de estarem a realizar um trabalho minucioso de reconversão do material analógico do passado para o formato digital do presente. Teve essa percepção?
Tive. Recordo-me que, quando entrei, tinham acabado de fazer o “The Mix”. Assisti a algumas sessões – nomeadamente a remisturas que foram feitas pelo William Orbit. O Fritz mandava o “dat” para Londres – com as pistas todas separadas – mas a aprovação final era deles. Num caso, o Orbit, esteve duas semanas à volta de uma remistura até que eles aprovassem o seu trabalho. São bastantes exigentes e sabem perfeitamente o que é que querem. Não querem fugir de uma linha pré-definida.
Aquilo que têm feito desde o álbum “Computer World” de 1981 é actualizar a música do passado através das novas tecnologias, não lhe parece?
Sim, mesmo em termos de composição não existem grandes revoluções. O que evoluiu é a qualidade sonora. Todos os discos continuam a ter uma temática. Para lá da música elecrónica, existe uma grande atenção aquilo que é cantado. A letra não é um acessório. Existe o cuidado de expor ideias e temas que tenham impacto.
Os espectáculos ao vivo são muito sofisticados em termos de som-luz-imagem. Em termos de organização, quantos pessoas vos acompanhavam?
A equipa técnica – iluminação, manutenção, som – eram cerca de 15 pessoas. Não eram muitos. Acima de tudo, existia uma grande organização. A equipa viajava sempre numa camioneta preparada com camas, sala de jogo, vídeo, casa de banho, porque os espectáculos eram seguidos. Tínhamos dois cozinheiros alemães com forno industrial. Eram os primeiros a entrar nas salas para montarem os “buffets” logo de manhã. O que prova que, apesar de toda a tensão inerente a uma digressão, se as coisas forem bem organizadas as pessoas sentem-se bem.
Os Ralf Hutter tem uma grande paixão por bicicletas, daí terem composto o tema “Tour de France” e agora lançarem um álbum alusivo à prova. Diz-se que nas digressões aproveitavam para andar de bicicleta. É verdade?
É totalmente verdade. A única coisa que não fiz com eles foi andar de bicicleta...[risos]. Não me interessava. No fim de semana havia sempre uma viagem de bicicleta para fazer. Cerca de 200km. Juntavam-se os três e lá iam eles. Era o seu passatempo preferido. Eu preferia o meu ténis ou o meu ping-pong.
Os estúdios Kling-Klang são apresentados muitas vezes como uma espécie de fortaleza impenetrável, sem qualquer comunicação com o exterior. É um mito?
É completamente impenetrável. Poucas pessoas entraram ali. Apenas alguns músicos e amigos. Era nos estúdios que ensaiávamos. Mas eles não gostam de se mostrar, faz parte da sua filosofia. O Florian nas digressões é até um pouco complicado porque passados dois dias já sente saudades de casa.
Para essa digressão de 1991 foram concebidos uns robôs-réplica de cada um dos membros do grupo. Também fizeram uma sua?
Sim. Era engraçado ver a minha cabeça-de-robô na imprensa...[risos]. Fazia parte da concepção do espectáculo. Era impressionante como aquilo funcionava porque os robôs eram tratados com extremo cuidado. Foram feitos por uma empresa italiana que conseguiu, via “MIDI”, que todas as articulações pudessem ser comandadas por computador. O auge do espectáculo era quando o pano caia, as pessoas ovacionavam em histeria total e, depois, abria-se novamente o pano. As quatro telas onde eram projectados vídeos – que se encontravam atrás de nós – levantam-se e, por detrás, surgiam quatro robôs a mexer-se. Era assim que acabava o concerto. A presença deles em palco evoluiu muito em palco, entretanto. Hoje, utilizam computadores portáteis e teclados o que deve facilitar imenso os movimentos.
Os Kraftwerk são adulados pelas novas gerações electrónicas, mas também parecem estar atentos ao que se vai fazendo na actualidade. Sentiu isso?
Sim. São muito atentos. Depois dos ensaios, à noite, combinávamos com o Ralf deslocações a diversas discotecas. Locais que passavam essencialmente música electrónica. Iamos só para perceber o que se andava a ouvir. Estavam super-atentos ao que se estava a passar no mercado mas, na minha opinião, nunca se deixaram influenciar. Mantiveram-se fiéis ao seu modelo.
Diz-se que os concertos, pelo facto de serem raros, são uma grande fonte de rendimento, ao mesmo tempo que reactivam o interesse sobre o fundo de catálogo do grupo. Teve essa noção?
Não. A sua maior fonte de rendimento é a autoria. Quando o “The model” esteve em 1º lugar no Top dos EUA conseguiram ganhar bastante dinheiro. Mas também é verdade que eles não são propriamente pessoas pobres... Podem-se dar ao luxo de parar durante um tempo. O Fritz, por exemplo, tem uma avença mensal, independentemente de existirem espectáculos ou gravações. Existe cuidado para todas as pessoas se sentirem satisfeitas.
Numa entrevista recente, Wolfgang Flür, um ex-Kraftwerk, declarava com alguma ironia que, apesar da imagem distante que cultivavam, eram abordados pelas fãs como acontece com qualquer outro grupo pop. É verdade?
Aí vou ser máuzinho. As únicas pessoas que eram abordadas, e às vezes de forma insistente, era eu e o Fritz. Os outros dois não saiam dos camarins. Não fazíamos de propósito, mas acabava por acontecer. Não era tentativa de protagonismo, eram as circunstâncias do momento. E isso não agradava a toda a gente. Existiam fãs que nos acompanhavam por todo o lado e era engraçado perceber que a sua música agradava a diversas gerações. Depois dos concertos, quando nos convidavam para sair, era uma festa. Em Inglaterra erámos tratados como deuses.
Continua a manter qualquer tipo de contacto com os Kraftwerk?
Com o Fritz. Somos muito amigos. Passa férias em minha casa. Com os outros tenho uma relação mais distante. Falamos apenas, ocasionalmente, ao telefone. Mesmo quando estive lá nunca consegui afeiçoar-me a eles.