Primeiro químico português nasceu há 150 anos

António Ferreira da Silva (1853-1923), considerado "o primeiro químico português", completaria hoje 150 anos. Defensor ferrenho dos valores monárquicos e católicos, tem o seu nome associado à análise química de águas e à criação, no Porto, do Laboratório Municipal de Química, mas há quem considere que o seu grande prestígio internacional ficou a dever-se ao trabalho na área da toxicologia - sobretudo por ter ajudado, por artes da química forense, a deslindar o chamado "Caso Urbino de Freitas", um mistério que envolveu bombons envenenados. Hoje, a partir das 18h00, a memória do cientista é evocada numa cerimónia no largo do Colégio das Missões, na vila de Couto de Cucujães, no concelho de Oliveira de Azeméis, onde nasceu. Para as 21h30 está previsto um colóquio nos claustros do mosteiro. Ferreira da Silva aprendeu Química Analítica como autodidacta e, em 1877, começou a leccionar na Academia Politécnica, no Porto. Oito anos depois, inaugurou a cadeira "Química Orgânica e Analítica" - disciplina que regeu até morrer. João Cabral, professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, recorda que o laboratório da academia era "extremamente deficiente", não só do ponto de vista de instalações - partilhadas com o Instituto Industrial -, mas também em termos de infra-estruturas e equipamentos. "As dotações para aquisição de reagentes, material de vidro, porcelana e outros, livros e revistas, eram reduzidíssimas, mal endémico no nosso país. Valeu a Ferreira da Silva a criação do Laboratório Municipal [de Química]", escreve Cabral num artigo publicado, em 1998, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Correspondência com Marie CurieA partir de 1881, Ferreira da Silva começou a produzir estudos a grande velocidade. Publicou mais de uma centena de trabalhos, desde química legal e forense à química aplicada e à higiene, alimentação, farmácia, indústria e agricultura. Os dois primeiros incidiram sobre a análise de águas, sendo um deles encomendado pela Câmara do Porto. O estudo das águas minerais - tema de grande interesse na altura, uma vez que os europeus aristocratas ou da alta burguesia recorriam com frequência às estâncias termais - chegou mesmo a levar Ferreira da Silva a escrever a Marie Curie, em 1913, com o objectivo de obter referências sobre aparelhos capazes de medir a radioactividade nesses mananciais. A cientista, distinguida com o Prémio Nobel, respondeu-lhe a todas as questões, mas negou o pedido de um autógrafo para um amigo. "Só que a carta era toda manuscrita, o que vale muito mais do que uma assinatura", contou ao PÚBLICO João Cabral, também autor de dois livros sobre a história da química e profundo conhecedor da biografia de Ferreira da Silva. No que toca à química forense, o cientista debruçou-se sobre vários casos bizarros. O mais mediático deles foi o chamado "Caso Urbino de Freitas". No dia 2 de Janeiro de 1890, o viúvo José António de Sampaio Júnior apareceu morto num hotel portuense. Urbino de Freitas, seu cunhado, era também seu médico e havia-lhe curado um resfriado alguns dias antes. Cerca de três meses depois, a família da vítima padecia de náuseas e dores de cabeça na sequência da ingestão de bombons enviados de Lisboa pelo correio. As três crianças órfãs foram também tratadas por Urbino de Freitas. Como os cuidados médicos não resultavam, os miúdos foram entregues a outros profissionais de saúde. As duas meninas foram salvas, mas o rapaz não resistiu. A hipótese de envenenamento foi logo levantada e os dedos da acusação apontaram para Urbino de Freitas. Para testar a suposição, Ferreira da Silva e outros peritos portuenses pediram a exumação dos cadáveress, de modo a que pudessem analisar as vísceras. Foram encontrados resíduos de alcalóides nas amostras de Sampaio; nas do filho foi identificada a presença de morfina, narceína e, provavelmente, delfina. Obtiveram-se assim as provas necessárias para o julgamento do médico, que acabou por ser condenado a 28 anos de cadeia ou degredo. As conclusões dos peritos portuenses foram amplamente atacadas por colegas e médicos, contenda que resultou na publicação do livro "O caso médico-legal Urbino de Freitas".Ferreira da Silva teve, ao longo da vida, alguns detractores, mas sempre se revelou "como um polemista científico terrível e um argumentador de primeira ordem", considera João Cabral. Essas lutas, no entanto, "deixaram feridas". Ferreira da Silva "sofreu o desgosto de não ter conseguido evitar que o laboratório municipal fosse extinto e que o tivessem demitido, sem justa causa, do cargo de director." O acontecimento terá abalado a sua saúde e provocado "um pronunciado desinteresse pela investigação científica". O seu estado físico piorou ainda mais com a morte da mulher, em 1922. Em período de convalescença, mudou-se no ano seguinte para uma casa em Santiago de Riba-Ul, onde faleceu uma semana depois. O funeral seguiu, dois dias depois, para o cemitério de Couto de Cucujães.

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