As casas do arquitecto que não quis ser moderno

A Casa Branca, nas Azenhas do Mar, é talvez uma das obras mais surpreendentes do arquitecto Raul Lino (1879-1974). Pode ser vista na exposição "Raul Lino, Cem anos depois", que hoje é inaugurada no Museu Machado de Castro, no âmbito da Coimbra 2003 - Capital Nacional da Cultura, ao lado de um conjunto de casas que este arquitecto projectou nas primeiras duas décadas de novecentos. Construída em 1920, enquanto residência de férias para a sua família, e por isso sem qualquer constrangimento programático - já que não existia um cliente formal -, a casa assenta numa ideia de simplicidade e austeridade que perpassa desde a organização do espaço interior à sua configuração externa. É, provavelmente, uma das suas melhores realizações, porque Lino não foi obrigado a manipular programas domésticos demasiado exaustivos, que constituíam normalmente a encomenda típica da burguesia para quem trabalhava. O imaginário da Casa Branca é o da arquitectura popular portuguesa - ou melhor, o modo como Raul Lino viu a tradição popular - e que se transformou numa das marcas que o seu percurso imprimiu ao longo da primeira metade do século arquitectónico português. Uma espécie de aproximação às teses "arts-and-crafts" imortalizadas pelo inglês William Morris e que retomavam a figuração popular e os materiais locais como fonte de inspiração. As casas de Lino tentaram fazer essa síntese. O seu problema foi muitas vezes o do cruzamento das escalas: como incluir um programa extenso numa configuração "singela" como a que a arquitectura popular parece evocar. O resultado são casas construídas a partir da adição de volumes, aludindo a diferentes referências históricas, numa simulação da diversidade temporal que o património português muitas vezes carrega.Tratando-se de uma exposição itinerante, a novidade de Coimbra é a inclusão da casa Angelo da Fonseca, de 1923 (actual Governo Civil da cidade), ilustrada com seis desenhos originais. A sua relação com a cidade foi aliás bastante profícua e, em 1911, podia ler-se no jornal "Notícias de Coimbra": "O arquitecto Raul Lino foi acolhido com muitos aplausos pela sua excelente obra".A exposição, comissariada por Claudio Sat, propõe uma abordagem historicista à arquitectura de Lino. É uma leitura possível, todavia já ensaiada noutros lugares. Até pelos tempos que atravessamos, a obra de Raul Lino merece ser reinterpretada de um modo mais crítico, que simultaneamente a posicione outra vez na história.Mal amado pelos arquitectos modernos - que o viram como reaccionário - e incompreendido pelos seus seguidores - que da sua obra retiraram somente os valores figurativos -, torna-se urgente que seja novamente revisto, numa provocação idêntica à que Pedro Vieira de Almeida fez em 1970. Nessa primeira exposição retrospectiva realizada na Fundação Calouse Gulbenkian, Vieira de Almeida escreveu então que Raul Lino era um "arquitecto moderno", abrindo assim a polémica e obrigando a olhar para o percurso deste arquitecto, que estudou na Inglaterra e na Alemanha - de onde terá trazido os seus ideais - de forma inteiramente nova. É, portanto, a partir de uma discussão em torno da presença ou não de modernidade que a sua obra deverá ser evocada.Mostrar um percurso como o de Lino através dos espaços domésticos que concebeu é credível, porque este deve ter sido o programa em que melhor se exercitou. Casas como a de Monsalvat (Monte do Estoril, 1901) ou do Cipreste (S. Pedro de Sintra, 1907-1914) estão entre as obras primas do início do século. Mas também é perverso fazê-lo sem dar a mão ao visitante, isto é, sem enquadrar cronologicamente este período, nomeadamente aludindo ao estilo de vida dos seus residentes, à realidade portuguesa da época, às expectativas de uma burguesia que não sobreviveu ao fim da Primeira Guerra Mundial, enquanto classe social. Quando Lino desenhava a casa dos Penedos (Sintra, 1922), o futurismo italiano já tinha sucumbido; na Alemanha, a escola da Bauhaus estava em pleno funcionamento; e Mies van der Rohe elaborava fotomontagens com arranha-céus envidraçados. Havia uma corrente vanguardista europeia que haveria de modificar a arquitectura internacional e que Lino voluntariamente sempre ignorou. Seria mais importante perceber porque o fez, para que os visitantes de "Cem anos depois" não fiquem embrenhados numa espécie de nostalgia patética."Raul Lino cem anos depois"COIMBRA Museu Nacional de Machado de Castro. Tel.: 239792550. Inauguração às 17h. Patente até 14 de Setembro..

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