A "terceira via" e o mundo
1. Onze líderes mundiais e cerca de meia centena de políticos e intelectuais de 30 países, que se reclamam do centro-esquerda, estiveram reunidos em Londres no passado fim-de-semana para relançar a ideia de que há uma "terceira via" para responder aos problemas do mundo. A iniciativa partiu do primeiro-ministro britânico Tony Blair, o pai da "terceira via" europeia, e contou com a presença do antigo Presidente americano Bill Clinton, o pai dos "Novos Democratas" americanos.A "progressive governance" - como é hoje designado este movimento mundial de centro-esquerda - nasceu por iniciativa comum de Blair e Clinton em 1998 para tentar romper as barreiras ideológicas demasiado fechadas da Internacional Socialista, começando por limitar-se aos partidos socialistas e sociais-democratas europeus mas rapidamente abrindo as suas portas a outros líderes mundiais.A sua última grande reunião foi em Berlim, em Junho de 2000, quando Bill Clinton estava ainda na Casa Branca, o centro-esquerda ainda estava no governo da maioria dos países da União Europeia, a economia mundial continuava a ser confortavelmente arrastada pela década de ouro da economia americana e o 11 de Setembro era um pesadelo apenas imaginável na ficção produzida em Hollywood. O que preocupava então os líderes mundiais de centro-esquerda era como controlar e regular uma globalização económica cujas consequências se tinham manifestado bruscamente em dois acontecimentos dramáticos: a crise dos mercados financeiros que eclodiu na Ásia, em 1997, contagiando e castigando duramente todas as economias emergentes; a revolta pública e violenta contra a reunião de Seattle da OMC, em Dezembro de 1999, que marcou o início dos movimentos anti-globalização. Em Berlim, sob os auspícios do chanceler Gerhard Schroeder, 14 líderes mundiais assinaram um compromisso político para o século XXI no qual proclamavam a necessidade de regular a globalização de forma a que servisse o desenvolvimento de todos e não apenas dos mais ricos e a urgência em encontrar formas de cooperação internacional que abrissem as portas à construção de uma ordem internacional multilateral mais inclusiva, mais justa e mais democrática. Para além dos líderes do mundo ocidental, estiveram em Berlim os Presidentes do Brasil, Chile e Argentina, respectivamente Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Lago e Fernando de la Rua, além do Presidente sul-africano Thabo Mbeki. Ideologicamente, o movimento não tinha dificuldade em rever-se nas ideias inovadoras de Blair e de Clinton sobre um desenvolvimento económico e social centrado nas políticas de "empowerment" dos indivíduos e na reabilitação e renovação da ideia de serviço público. Em termos internacionais, a "agenda global" do Presidente americano, assente na ideia da expansão do comércio e da democracia, na divulgação das novas tecnologias e no combate às doenças e à fome era suficientemente atractiva para estabelecer uma ponte entre o Norte desenvolvido e o Sul em desenvolvimento. Três anos depois, é o optimismo de Berlim que parece saído de um filme de ficção científica. 2. Muitos dos líderes europeus que participaram na reunião de Berlim - de Lionel Jospin a António Guterres, passando por Massimo D'Alema e Giuliano Amato ou Wim Kok - já não estão no governo. A União é hoje maioritariamente governada por partidos de centro-direita que chegaram ao poder empurrados pelos ventos populistas e xenófobos que varreram a Europa na viragem do século e para os quais a "terceira via", nas suas várias versões, não tinha preparado uma resposta. Dos que restaram, Tony Blair vive a sua maior crise política de sempre, profundamente desgastado pelas dúvidas que pairam sobre a forma como conduziu os britânicos para a guerra no Iraque. Gerhard Schroeder luta desesperadamente por reanimar uma economia em estado comatoso persistente, iniciando uma série de reformas impopulares e indispensáveis que adiou por demasiado tempo. Clinton abandonou a Casa Branca com a derrota do seu herdeiro político, o democrata Al Gore, e a entrada em cena do republicano George W. Bush. A América Latina viu os benefícios do movimento de democratização dos anos 80 e 90 morrerem sob os efeitos da crise financeira de 1997 e da aplicação dogmática das receitas "neoliberais" do consenso de Washington. A África prossegue a sua descida aos infernos da fome, da guerra e da doença. A agenda de Berlim morreu sob os escombros do 11 de Setembro. Não porque tivesse deixado de fazer sentido, mas porque a sua viabilidade apenas poderia assentar no forte empenhamento internacional dos Estados Unidos e numa Europa politicamente unida, economicamente forte e auto-confiante. E a Europa não conseguiu resistir ao impacte da mudança radical da estratégia internacional da América nem, muito menos, encontrar a sua própria via para enfrentar a nova realidade mundial pós-11 de Setembro. Deixou-se arrastar para uma profunda crise existencial que a guerra no Iraque apenas veio tornar mais visível e mais dolorosa.3. Valeu de alguma coisa a mega-reunião de Londres? Tony Blair quis fazer dela uma oportunidade para aliviar a pressão da contestação interna do seu próprio partido e a perda de popularidade junto de uma opinião pública cada vez mais exigente quanto à clarificação das suas decisões internacionais, como quanto às sua agenda interna de reforma dos serviços públicos. A agenda que o líder britânico preparou para o encontro leva em contra os novos desafios que se colocam hoje às sociedades europeias, em geral, e ao centro-esquerda, em particular: como é que as sociedades ocidentais podem lidar simultaneamente com o envelhecimento populacional e os crescentes fluxos migratórios; como criar um "capitalismo responsável" que reconheça as necessidades sociais; como reformar os sistemas de pensões; novas formas de combinar a iniciativa pública e privada na gestão dos serviços públicos; a necessidade de transformar a sustentabilidade ambiental numa virtude económica; como reconstruir a aliança transatlântica. Os temas escolhidos são certamente actuais e podem alimentar algum debate útil nos partidos de centro-esquerda europeus, estejam eles no poder como Blair e Schroeder, estejam eles na oposição. Mas será esta a agenda que interesse ao mundo em desenvolvimento? Apenas em parte, como disseram claramente os seus representantes, aliás as verdadeiras "estrelas" da reunião de Londres, a mais brilhante das quais foi, curiosamente, o Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Tal como fizera em Evian, na reunião do G8 do passado mês de Junho, Lula falou de coisas concretas e não de belos princípios. Coisa concretas que interpelam directamente a esquerda europeia. Por exemplo, do abuso que, do alto do seu poder económico, os países ricos continuam a cometer contra os mais pobres quando pregam o comércio livre como receita universal e praticam o proteccionismo. Quando defendem a "globalização regulada" e o "capitalismo responsável" e permitem que os fluxos incontrolados do capital financeiro desestabilizem um país - que pode ser tão grande como o Brasil - em algumas horas, empurrando milhões de pessoas para a miséria. Quando pensam que a segurança e a estabilidade mundial são compatíveis com a exclusão de milhões e milhões de seres humanos da simples possibilidade de matar a fome.A linguagem do Presidente brasileiro tem pouco a ver com a velha esquerda latino-americana anti-capitalista e anti-americana (Lula levou mesmo a sua ousadia ao ponto de ter aconselhado a França e a Alemanha a criticarem menos Bush e a ajudá-lo mais). Tem a ver com a democracia e com a justiça, que não podem continuar a ser um direito exclusivo do mundo rico, mas têm de ser a regra das organizações internacionais e das relações entre Estados. A agenda de Berlim não perdeu a sua actualidade. Faltam-lhe apenas protagonistas à altura. Com a coragem e a clarividência do Presidente brasileiro.