Talvez o facto de saber que, ao contrário de todos os outros, o Hulk não é apenas herói, é também monstro, simultaneamente um dom e uma maldição: o alter-ego, acordado em momentos de tensão, do Dr. Bruce Banner, e a expressão descomunal da raiva reprimida do cientista. Como pode uma criança não se sentir maravilhada e aterrorizada perante uma criatura assim, dramática e patética, que pode passar da fúria descontrolada para a doçura mais desarmante?
Chegada a adolescência, essa criança cresceu e percebe que não são só a necessidade de acompanhar os próximos capítulos da odisseia de um colosso acossado por tudo e todos ou a curiosidade em saber quais serão as transformações mirabolantes que se seguirão (regressará ele à breve cor cinzenta original? Por quanto tempo se manterá o domínio absoluto do lado humano? A selvajaria animal será para durar?...) que a impedem de abandonar este universo negro e trágico. Não, a razão que justifica a obsessão contínua - incontrolável, pois pode dar-se até o caso de, a dada altura, o estranho aviso com um Hulk calmo/irritado colocado na maçaneta da porta do quarto ser a melhor forma de comunicar aos outros as mudanças no seu estado de espírito... - por esta figura é o drama vivido pelo Dr. Banner, um homem num périplo desesperado para encontrar a felicidade, incapaz de controlar o seu destino e os demónios interiores que o assolam e de lidar com um corpo em mutação.
Que melhor companheiro pode pedir um "teenager" a braços com as dores do crescimento e a tentar perceber qual o seu lugar num mundo que ainda não compreende totalmente?
É esse mundo viciante de emoções aos quadradinhos da BD original que (para sua alegria e alívio) este fã vai encontrar no filme de Ang Lee: tragédia, medo, desespero, estranheza e solidão, e não apenas as calças cor de púrpura que, pequeno milagre, nunca se rasgam totalmente... Logo no início, começa por revisitar a Base Gama onde, em pleno deserto, os míticos Stan Lee e Jack Kirby fizeram nascer o Hulk, para depois ser reapresentado a uma série de conhecidos seus de longa data: o sofredor Banner, a abnegada Betty, o autoritário General Ross ou o viscoso Glenn Talbot.
E quando assiste à primeira transformação de Banner no monstro cor de jade, revive a incredulidade do seu encontro inicial com o Hulk, aquele misto de fascínio e terror perante uma bisarma descomunal, personificação da fúria desabrida, capaz da destruição irracional, mas ao mesmo tempo criatura inocente e simples, quase uma criança à procura do seu lugar no mundo.
Mais à frente, é com ternura que observa um dos clássicos momentos de introspecção do Hulk, em harmonia com a vegetação que o rodeia, mesmo sabendo que esse instante será fugaz, pois o barulho dos tanques e helicópteros recorda-o das constantes perseguições movidas pelo exército dos "homenzinhos" ao gigante (e do tempo que lhe demorou a perceber que o Hulk não podia voar, mas apenas saltar à distância de vários quilómetros...). Já a visão de um angustiado Banner em tronco nu, pós-transformação, fá-lo recordar a desilusão sentida ao constatar, uma e outra vez, que se para o monstro a paz é sempre inacessível, para o homem ainda o será mais...
Perante tudo isto, importar-lhe-á realmente que os actores (exceptuando Sam Elliott, sósia perfeito do General Ross) não se pareçam com as personagens originais (Eric Bana e Jennifer Connelly, demasiado musculosos, não têm o aspecto franzino de cientistas "totós"), que o pai de Bruce Banner (na BD, apenas um fantasma do passado) nada tenha a ver com o Homem-Absorvente, ou que a origem do Hulk tenha sido "actualizada" (a Guerra Fria já terminou; por isso, não há aqui qualquer espião russo, e em vez da construção de uma bomba gama, Banner dedica-se a experiências de mutação genética)? Claro que não...