100 Anos de George Orwell: o Big Brother está no meio de nós
A expressão Big Brother - o olho que tudo vigia, literalmente aplicado no concurso: a câmara ligada 24 horas, emitindo para fora da Casa tudo o que se passa dentro da Casa -, é tão imediatamente reconhecida em Trás-os-Montes como numa povoação da Amazónia, havendo televisão. Despojado da sua complexidade política, o Big Brother foi absorvido e difundido como nunca pelo Big Brother - o écrã que representava a omnipresença do ditador, no livro visionário de Orwell.
E, de forma menos abrangente, adjectivos como "orwelliano" ou a frase "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros" (de "O Triunfo dos Porcos", sátira à revolução corrompida pelo totalitarismo) continuam a ser usados na comunicação - são um significado, mesmo quando a sua origem não é reconhecida.
Num domínio ainda mais estrito, o do pensamento sobre o mundo contemporâneo, a obra de Orwell - sobretudo "1984" e o ensaio "Politics and English Language" - continua a impressionar pela sua espantosa antecipação de como o poder se amplia e perpetua através do uso da tecnologia e da manipulação da linguagem. Em meados dos anos 40, o desenvolvimento da TV e da propaganda política estavam a anos-luz da sofisticação que Orwell visionou, e hoje reconhecemos.
Quanto à eventual perda de actualidade de "1984" e de "O Triunfo dos Porcos" depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, a denúncia que ambos contêm não se dirige apenas ao totalitarismo comunista, mas a qualquer forma de totalitarismo ou opressão. Assim quis Orwell. E será bastante inútil, hoje, instrumentalizá-lo à esquerda ou à direita. Escreveu contra o imperialismo britânico, escreveu e lutou contra o fascismo, escreveu contra o comunismo a partir da Guerra Civil de Espanha. Foi até ao fim, declaradamente, "um socialista democrático".
Deixou no armário um esqueleto, a lista dos 38 nomes eventualmente membros ou próximos do Partido Comunista que ele entregou a um departamento semi-secreto do governo britânico em 1949. O historiador Timothy Garton Ash divulgou a lista na última edição da revista do "Guardian" (21/06). E no ensaio que acompanha a publicação defende Orwell, à luz do contexto, político e pessoal, da época (ver texto nestas páginas).
A experiência do impérioEric Arthur Blair, que viria a usar como pseudónimo George Orwell, nasceu a 25 de Junho de 1903 em Motihari, na Índia, numa família de funcionários da administração colonial britânica - "classe média baixa-alta", ironizava ele, ou seja, com as aspirações e os preconceitos da alta e a capacidade financeira da baixa.
Viaja ainda em bebé para Inglaterra, faz o liceu em Eton, entre os privilegiados, e decide alistar-se na polícia imperial aos 19 anos, em vez de ir para a universidade. Entre 1922 e 1927 vive a experiência colonial na Birmânia, até não a suportar mais. Denunciaria anos depois a opressão do império no livro "Burmese Days" (1934).
De 1928 a 1932, entre a escrita e trabalhos pontuais (como lavar pratos), deambula pelas zonas operárias ou boémias de Londres e Paris. Tenta, e falha, criar novelas "à Joyce". É em Paris que pela primeira vez será hospitalizado com pneumonia. Tem então apenas 25 anos. Regressa a Inglaterra para dar aulas, publica "Down and Out in Paris and London", o seu primeiro livro, assinando George Orwell. Desiste de dar aulas, começa a colaborar em jornais e revistas, em 1935 conhece Eileen O'Shaughnessy, uma estudante de psicologia com quem virá a casar. Investiga a vida nas zonas industriais no Norte de Inglaterra, torna-se socialista.
A experiência da CatalunhaEm 1936 parte com Eileen para combater os fascistas na Guerra Civil de Espanha, integrado no Partido Operário de Unificação Marxista (POUM). É aqui, na Catalunha, que vê os estalinistas perseguirem camaradas que supostamente estariam do mesmo lado: os marxistas heterodoxos do POUM, e depois, numa repressão maciça, os anarquistas. Ferido na frente por uma bala dos homens de Franco, Orwell recupera num hospital e foge para Inglaterra em 1937. "Homenagem à Catalunha" (1938) é o livro em que descreverá a matança cometida pelos comunistas fiéis a Moscovo - tentando contrariar a recepção branqueada dos acontecimentos entre a esquerda britânica.
Passa a II Guerra em Londres, depois de se ter tentado alistar (recusaram-no, por causa dos pulmões). Escreve nos jornais. Em 1941 a BBC contrata-o para as emissões destinadas à Índia. O desencanto com a máquina de propaganda televisiva em tempo de guerra leva-o a demitir-se - e será recuperada, recriada em "1984".
Acaba de escrever "O Triunfo dos Porcos" em 1944. Concebido inicialmente como uma sátira ao que aconteceu à revolução russa, o livro é recusado por mais do que um editor - incluindo Jonathan Cape, a conselho de T.S. Eliot. A URSS era aliada na guerra contra Hitler, a paródia constituía um embaraço.
Orwell torna-se correspondente de guerra do "Observer", vai a Paris (onde se encontra com Hemingway), à Alemanha, à Áustria. Eileen morre, entretanto, ao ser anestesiada para uma operação. "O Triunfo dos Porcos" é publicado, com grande sucesso, em 1945. Orwell refugia-se com o filho adoptado, Richard, numa pequena quinta, numa ilha escocesa.
É aí que, cada vez mais doente, começa a trabalhar na sua obra derradeira, em que representará minuciosamente a distopia de um mundo futuro, dominado pelo Big Brother, em que cada cidadão é permanentemente vigiado por um écrã, em que o amor, o prazer, a liberdade, são crimes. Um mundo com três máximas: "Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força". Em que o rosto dos dissidentes é projectado em sessões chamadas Dois Minutos de Ódio. Em que existe uma Polícia do Pensamento. Em que o Inglês, velha língua, foi substituído pelo Newspeak, nova língua - uma língua que agrega, mutila, exclui, anula, enfim, serve o poder, revisionária ao ponto de proceder à tradução da literatura que está para trás. É "1984".
O livro é publicado em Junho de 1949, com sucesso imediato. Em Outubro, Orwell casa-se com uma velha amiga, Sonia Brownell, em parte para dar uma tutora a Richard. Morre a 21 de Janeiro de 1950 no hospital. Não chega a cumprir 47 anos. Há uma frase em que resume o seu projecto da sua obra: "Tornar a escrita política numa arte".