Paredes em movimento
Recentemente, perguntaram ao contrabaixista Charlie Haden, de passagem por Lisboa, o que diria Carlos Paredes se ouvisse "Movimentos Perpétuos - Música Para Carlos Paredes", disco que reúne 20 temas de músicos portugueses num tributo ao mestre da guitarra portuguesa. Haden, que gravou um álbum de parceria com Paredes, "Dialogues" (1990), deu o seu palpite: "Não sei se ele gostará de hip-hop. Mas acho que a ideia de ter alguém do hip-hop a trabalhar com ele o ia deixar maluco de felicidade...""Movimentos Perpétuos", CD duplo que cruza artistas e géneros - do jazz ao hip-hop, da música de dança ao fado, da música erudita à guitarra portuguesa - em torno da música de Paredes, é lançado esta noite, às 22h30, no Lux, em Lisboa, onde actuarão alguns dos músicos que participam no disco, como os Dead Combo (novo projecto de Tó Trips, ex-Lulu Blind, com o contrabaixista Pedro Gonçalves), o guitarrista Ricardo Rocha e a dupla Shelter Av. (dos Dj Tó Ricciardi e Miguel Guia). Além destes, o elenco do álbum inclui Sam the Kid, Gabriel Gomes, Verdes Sons, Mísia, Rodrigo Leão, Bullet (projecto de Armando Teixeira, ex-Da Weasel), António Pinho Vargas, José Eduardo Rocha (compositor e director musical do agrupamento Ensemble JER), Gaiteiros de Lisboa, Carlos Bica & Azul, Maria João e Mário Laginha, Ana Sofia Varela e Fredo Mergner, Marco Figueiredo, Ana Sadio, Lupanar, Loopooloo (banda rock das Caldas da Rainha) e Belle Chase Hotel com o Quinteto de Coimbra. Não se pode dizer que a selecção seja óbvia. "A ideia era tentar não convidar as pessoas que estão sempre a trabalhar sobre a obra de Carlos Paredes, porque isso não ia acrescentar nada", explica Carmo Stichini, responsável pela produção musical e programação do projecto Movimentos Perpétuos, do qual o álbum duplo é apenas uma ponta. "Quisemos arriscar e ter artistas de áreas e experiências diferentes. Tivemos sempre medo que não houvesse uma coerência mas isso foi conseguido." A iniciativa não partiu, como seria de supor, de uma editora discográfica (embora o disco tenha a chancela da Universal), mas de uma equipa de pessoas sob o nome de Movimentos Perpétuos: a designação não só recupera o título de um dos álbuns maiores de Paredes, "Movimento Perpétuo" (1971), como é um manifesto de intenções - perpetuar a memória e a obra do compositor e músico. Tudo porque o que existe sobre Paredes "é muito pouco". Desde 1996 que Noélia Patrício, um dos elementos do núcleo duro do projecto, tem organizado várias exposições sobre o guitarrista - até ao dia em que o material "se esgotou". "Ele tocou quase no mundo inteiro e não existe um cartaz, um programa desses concertos", afirma Stichini. "Não guardava nada." O objectivo final é proporcionar uma investigação global sobre Paredes, convidando historiadores e especialistas, e criar um "site" (com dados biográficos, material dos concertos, registos de pessoas que se cruzaram com ele) que torne a sua obra mais acessível. Até lá, a associação espera gerar fundos através de uma série de "movimentos": o CD duplo é o segundo, depois de um concerto em Coimbra, cidade-berço de Paredes, a 16 de Fevereiro, dia do seu 78º aniversário. "Isto sou eu" "78 anos do Carlos Paredes, 78 artistas: essa era a base", lembra Luísa Amaro, companheira de Paredes, associada ao projecto. A ideia inicial era organizar uma exposição de artistas plásticos com obras criadas para o efeito - a venda das peças reverteria para os fundos da associação. "Mas muita gente se quis associar. O que era apenas uma exposição começou a abrir para outros campos", continua Luísa Amaro. Prova da "unanimidade impressionante" que o nome de Carlos Paredes convoca - e que só terá adversário na inflexível modéstia do guitarrista -, que talvez não se resuma apenas ao apelo da sua música, mas também à sua atitude perante ela: a incessante confluência de linguagens, sem se fixar. Se a guitarra portuguesa é hoje sinónimo de Carlos Paredes, Carlos Paredes é mais do que a guitarra portuguesa. "É perigoso ficar a fazer parte só de um imaginário", diz Amaro. "Este disco tem tudo a ver com Carlos Paredes, é o avivar de toda a obra de um homem nas gerações que continuam. De uma forma renovada, mais fresca, que talvez nem ele fosse capaz de o fazer. É neste Carlos Paredes que eu acho que ele se reveria." Paredes ouvia com frequência, sobretudo em Coimbra, dizerem-lhe: "Sabe, nós tocamos as suas coisas". Respondia: "Fico muito grato, mas em vez de tocar as minhas coisas, porque não toca antes as suas?" Fiel a esse espírito, "Movimentos Perpétuos" não é um álbum de versões - até porque "isso não é possível", diz Carmo Stichini.Debilitado por uma doença degenerativa há quase 10 anos, o virtuoso guitarrista já ouviu o disco. Comoveu-se com a versão de "Verdes Anos" - "quando lhe soa a guitarra" - pelos Belle Chase Hotel e pelo Quinteto de Coimbra. E, conta uma entusiástica Luísa Amaro, "ficou com um sorriso de canto a canto com o Sam the Kid". Afinal, Charlie Haden esteve muito perto de acertar. O tema de Sam the Kid, intitulado "Viva!", contém excertos de uma entrevista de Paredes à RDP, em 1971. "Está a ouvir isto? O que é?", perguntou-lhe Luísa Amaro. "Sou eu."