Ainda as primeiras letras do genérico inicial desfilam sobre o fundo a negro do ecrã e já ficámos com a sensação de que a história a que vamos assistir não será das mais felizes, daquelas em que a exaltação do espírito humano e o triunfo emocional têm lugar garantido.
E o que vemos, então, a seguir? Simplesmente, um homem que caiu num buraco sem fundo: Ben Sanderson (Nicolas Cage), argumentista de Hollywood e bêbado decrépito em processo de decadência avançado. Pálido, com o hálito a tresandar a álcool, não parece sequer alimentar-se de outra coisa, bebendo de manhã à noite sem parar, num estado de embriaguez crónica que até já inclui ataques de "delirium tremens"...
Abandonado pela mulher e filho - antes ou depois de ter começado a beber, nunca o saberemos (e de facto, que interessa?) e ele próprio diz já não conseguir (ou querer) lembrar-se -, erra, angustiado, pela noite dentro. Tornou-se um incómodo para os amigos - nem sequer o tentam demover, apenas se querem ver livres dele quando lhes vem pedinchar dinheiro para mais algumas bebidas - e, pelo que podemos ver numa das suas deambulações nocturnas pelos bares de Los Angeles, os dotes de conquistador já não são o que eram: as mulheres também já não parecem querer nada com ele...
É um "farrapo humano" (parafraseando o título português do clássico de Billy Wilder, "The Lost Weekend", de que este filme é uma espécie de revisão actualizada), alguém que "está doente". Só que essa "doença", se bem que apresente contornos ou consequências físicas, assumirá sobretudo as características de um profundo mal-estar existencial: quando o vemos acordar, a meio da noite, no chão da cozinha, ao lado do frigorífico aberto, percebemos que já não há ali qualquer vontade de viver ou réstia de auto-estima. A suspeita inicial transforma-se então em certeza: fomos convidados a presenciar a aniquilação de um homem, que se destrói, metódica e voluntariamente, com uma assustadora compulsão suicida.
No final desta espécie de prólogo, Ben é despedido, algo que para ele é quase uma benção, pois com o dinheiro da compensação vai poder financiar aquilo em que já pensava há muito, a viagem (sem direito a regresso) até Las Vegas: da cidade dos anjos para a cidade da perdição, ou a capital do vício, inferno na terra, como cenário ideal para quem procura "beber até morrer".
Posto em marcha o destino inelutável da personagem, regressa finalmente o genérico. Passaram 15 minutos de filme e o que vimos atrás serviu apenas de introdução para o que é de facto decisivo aqui - o encontro entre Ben e Sera (Elisabeth Shue), a prostituta com coração de ouro.
Ben e Sera, duas almas gémeasÉ algo que, embora aconteça de forma aparentemente acidental, por entre as ruas iluminadas pelo brilho dos néons de Las Vegas, não poderia estar mais predestinado. Porque acontece entre duas almas gémeas, "losers" que a vida abandonou, esquecidos por tudo e todos.
Se a existência de Ben, quase um fantasma que já não pertence a este mundo (por isso, antes de se mudar, desfaz-se dos pertences, levanta todo o dinheiro e abandona a casa, para apagar os últimos vestígios de uma vida que no fundo já terminou), é miserável, a de Será não é melhor. Utilizada e humilhada de forma constante, mero pedaço de carne para ser alugado, a sua degradação é total e, à sua maneira, também se está a destruir, ao mesmo ritmo alucinante de Ben. "A maior parte do tempo, sou uma equação: 30 minutos do meu corpo custam 300 dólares", diz ela.
Assim, entre um homem que se está a matar, mas não sabe porquê (apenas que o quer), e uma mulher farta de estar sozinha, nasce uma comovente ligação, primeiro de amizade, depois de amor. Um amor intenso e "platónico", que se baseia não na componente sexual (aliás, até bem perto do fim, inexistente), mas na interdependência total entre duas pessoas que precisam desesperadamente uma da outra e que, por um breve instante, se tocam e ajudam mutuamente, mitigando uma solidão irremediável. Aceitam-se um ao outro sem fazer juízos morais e sem nenhum esperar que o outro mude e é isso que é desarmante numa relação condenada ao fracasso.
Tal como eles, também nós nunca duvidamos de que Ben acabará por morrer, levando avante o suicídio alcoólico programado. Ao contrário do que acontecia em "The Lost Weekend", em que o amor de Jane Wyman acabava por salvar Ray Milland, o final não trará qualquer salvação, apenas a resignação em face da derrota. Aliás, nem poderia ser de outro modo nesta tragédia urbana.
Mas, se o amor de Sera não salva Ben, traz-lhe pelo menos a tão almejada paz, o que já não é pouco: deitado na cama, antes de soltar o último suspiro, olha para o lado e percebe que não morrerá sozinho, pois Sera não o abandonará e ficará com ele até ao fim. É essa vontade inabalável de levar até às últimas consequências a lógica crua de uma história lúgubre e triste (mas, ainda assim, bafejada por uma desopilante veia de humor negro) e de a documentar com doloroso realismo que faz do filme de Figgis um objecto a ter em atenção, ainda para mais num tempo em que os finais felizes, por mais inverosímeis que sejam, parecem ser cada vez mais a única solução possível...
Como explicar então o surpreendente (e louvável) sucesso de "Morrer em Las Vegas"? Talvez pela honestidade a toda a prova que revela, para a qual muito contribuem as notáveis interpretações de Nicolas Cage e Elisabeth Shue. Num filme que é acima de tudo uma fulgurante "character piece", os actores são extraordinários.
Cage, em particular, é magnífico, construindo com serenidade absoluta uma personagem nos antípodas do (fabuloso) histrionismo maníaco que até aí era a sua imagem de marca. Shue também não lhe fica atrás, num admirável registo de "underacting" demonstrativo de um talento luminoso que os produtos menores por onde andava perdida não podiam deixar antever. Os tempos de estrela adolescente de filmes como o primeiro "Karate Kid" (1984) já iam longe e quase ninguém se lembrava dela. Sera significou a ressurreição de uma carreira, que, infelizmente e depois de uma série de escolhas pouco felizes, parece hoje à beira de um novo esquecimento...