Luciano Berio (1925-2003): O compositor humanista
Um dos compositores mais prolíficos e marcantes do século XX, Luciano Berio foi uma das grandes figuras da vanguarda musical e um dos criadores cuja mensagem chegou a um público mais amplo, graças à extraordinária força comunicativa da sua obra. A abertura de espírito, a receptividade a todas as referências culturais e a todos os materiais musicais e o seu sentido de humor serão, porventura, algumas chaves do seu sucesso. A longa caminhada em torno da "busca constante duma resposta para algo que se altera continuamente", para usar uma expressão do próprio Berio, chegou ao fim terça-feira, quando o compositor faleceu, aos 77 anos, numa clínica de Roma, onde recebia cuidados intensivos após uma operação delicada à coluna vertebral. Mas a sua música, reunida num catálogo imenso que percorre todos os géneros, continuará bem viva. Porque, como nos diz Roland Barthes em "Le Plaisir du Texte" (Paris, 1973), "a música de Berio provoca euforia; porque vem da cultura, das culturas, não rompe com ela(s), e, por esse facto, confirma uma prática sempre confortável de leitura-escuta".Berio teve o mérito de combinar na sua obra as principais experiências criativas da segunda metade do século XX com uma humanidade e sensibilidade expressiva que contrasta com o modernismo esotérico da maior parte dos seus colegas. Considerava a música como "a linguagem das linguagens", o que se traduziu numa abordagem plural de caminhos e numa relação estreita entre a arte e a vida. "Não gosto de viagens estocásticas, que só prestam atenção à forma geral, à casca, e não às relações que podem ser concretizadas dentro dela, dum modo responsável. Do mesmo modo, não gosto de arquitectos que se tornam 'designers': surgem com um bom cenário, oferecem-no ao teatro e depois esperam que os pobres infelizes da construção cenográfica o produzam. Também não aprecio arquitectura que não tenha funções precisas e não respeite a vida, os ideais e o trabalho do homem comum", disse numa entrevista a Rossana dal Monte e András Varga ("Luciano Berio: Two Interviews", Londres-Nova Iorque, 1985).Do serialismo à música electrónicaNascido em 1925, em Oneglia, no seio de uma família de músicos, Berio começou a estudar composição e piano com o pai (Ernesto Berio) e com o avô (Adolfo Berio), ambos organistas e compositores. Após a II Guerra Mundial formou-se em Direito e frequentou o Conservatório de Milão. Durante os anos 50 voltou a sua atenção para o serialismo (matéria que estudaria nos EUA com Dallapiccola) e para a música electrónica, o que o levou a fundar o famoso Estúdio de Fonologia Musical da RAI, em conjunto com Bruno Maderna - o interesse pela electroacústica manteve-se até ao fim da vida, tendo criado, em 1987, em Florença, o estúdio "Tempo Reale", onde realizou obras-primas como "Ofanim" (1988).Para além do seu contributo no seio das principais correntes musicais do pós-guerra (o serialismo, a electroacústica e a música aleatória), Berio foi um mestre da voz - contando com a colaboração da extraordinária cantora Cathy Berberian (1925-1983), com quem casou em 1950 - e do teatro musical. A sua colaboração com a RAI levou-o também ao contacto com Umberto Eco, de quem se tornou amigo. Juntos produziram um programa radiofónico sobre onomatopeias, cuja peça final foi uma primeira versão de "Thema (Omaggio a Joyce)" (1958). Nesta obra, na "Sequenza III" ou em "Recital for Cathy", Berio faz um inventário de todas as emissões vocais possíveis e imagináveis e de todas as modalidades do canto. Quanto ao teatro musical, que desenvolveu em correlação com as pesquisas do teatro experimental contemporâneo, ficou marcado por obras como "Laborintus II" (1965), sobre textos de Edoardo Sanguineti, "La vera stroria" (1982) e "Un re in ascolto" (1985), sobre textos de Italo Calvino, ou "Outis" (1996). A sua última obra lírica, "Cronaca del Luogo", foi encomendada pelo Festival de Salzburgo e estreada em 2000. No que diz respeito à música instrumental, destaca-se o monumental ciclo das "Sequenze", peças altamente virtuosísticas que exploram as potencialidades dos instrumentos a solo (incluindo a voz), escrito ao longo de mais de 40 anos. Os últimos Encontros Gulbenkian dedicados ao compositor, em 1999, deram a ouvir pela primeira vez em Portugal, em dois concertos inesquecíveis, a totalidade destas peças, assim como o impressionante "Coro" (para 40 vozes e instrumentos) sobre textos de Pablo Neruda e cantos tradicionais de vários países. Berio considerou esta última obra como a sua Jerusalém, "uma cidade cujas pedras brancas, maravilhosamente belas, com o decorrer dos séculos têm sido usadas para muitas finalidades diversas, mas que agora estão reunidas em novos prédios, com novas funções, sob diferentes religiões e diferentes administrações."Mas a mais popular das criações de Berio é, provavelmente, a Sinfonia (1969), cujo celebérrimo terceiro andamento incorpora o "Scherzo" da Sinfonia nº2, de Mahler, bem como inúmeras citações literárias (Lévi-Strauss, Samuel Beckett) e musicais (de Bach a Boulez, passando por Beethoven e Stravinski). É também um excelente testemunho da apetência do compositor para "trabalhar com a História". "Não pode existir tabula rasa, especialmente na música", afirmou a propósito dos seus colegas que, nos anos 50 e 60, queriam à força cortar com o passado. "Lidamos sempre com modelos, mesmo aqueles que construímos para nós mesmos; o nosso trabalho consiste em alargar o campo das vias de transformação, até que consigamos transformar uma coisa noutra, como num conto de fadas."