Eles vivem à noite

É que, entretanto, passaram oito anos e "Mulher-Polícia" é um projecto que existe desde 1998, parecendo pairar sobre ele o estigma de filme difícil. Sapinho reescreveu o argumento depois de uma primeira fase de rodagens e voltou a filmar. "Mas isso também é o normal em todos os sítios em que se faz cinema, excepto Portugal. Há alguém que manda nestes artistas, que se sentem tão livres, e que lhes diz: 'Filmas seis semanas.' E eles filmam. Isso para mim é impossível." Haverá menos arrogância e mais desespero aqui: o desespero de quem quer fazer cinema contra todas as evidências em contrário. "Se calhar, só noutros filmes é que se vai perceber o que eu fiz em 'Mulher-Polícia'. Porque 'Corte de Cabelo", para mim, foi uma explosão, uma inspiração a seguir a uma explosão. Este filme foi pesado, foi sopesar muitas coisas daquilo que é feito no cinema. Portanto, o que eu aprendi com este filme é impressionante", diz o realizador de 38 anos.

o peso da expectativa. "Mulher-Polícia" chega sob o peso da expectativa. Não estamos em território estranho - os primeiros planos mostram um lago, árvores, há um coração gravado numa árvore e dentro dele está um nome, Tânia, a única pista para podermos nomear a protagonista - como em "Glória" (1999), de Manuela Viegas, de que Joaquim Sapinho foi co-argumentista e que foi produzido pela Rosa Filmes (fundada por Sapinho e Amândio Coroado e que nasceu com "Corte de Cabelo"). Mas pode parecer estranho no universo de um realizador que irrompeu com um filme voraz e veloz, um filme urbano como "Corte de Cabelo". Parece evidente: neste filme reconhece-se muito mais uma filiação num certo cinema português do que em "Corte de Cabelo" - que foi, justamente, aclamado como um "corte", uma outra hipótese de cinema, contaminada pelo vídeo e pela voragem dos corpos de Carla Bolito e Marco Delgado. É um filme depois de outros filmes.

"Na Rosa Filmes é tudo uma grande trapalhada de amizades e amores, há transvases de uns filmes para os outros", reconhece Sapinho. "Mas, no fundo, a questão é: para quem fazemos os filmes? É como se este filme tivesse sido demasiado egoísta, só para mim. 'Corte de Cabelo' tinha a ver com um momento da minha vida em que eu estava feliz e contente", ri-se. "Neste, se calhar, não estava tão feliz e alegre. 'Corte de Cabelo' é como se fosse um filme em que eu me sentia a respirar com as outras pessoas, e neste sentia-me muito só. Mas o que eu gostava de fazer era filmes para todas as pessoas e acredito que, para isso, o mais importante é a progressão dramática da história. Coisa com que o cinema português não lida há muito tempo e que eu acho que este filme lida de uma maneira mais precisa do que o meu filme anterior."

"Corte de Cabelo" era um filme de concentração - o dia do casamento de Rita (Carla Bolito) e Paulo (Marco Delgado); "Mulher-Polícia" será um filme de dilatação. A primeira vez que vemos Tânia (Amélia Corôa, actriz de "Esquece Tudo O Que Te Disse") e o filho, Rato (Ludovic Ferreira), é no cemitério. Ele afasta-se, ela puxa-o para si. E há Liliana (Maria Silva), amiga de Rato, a completar o trio, como num filme de Nicholas Ray, e a condenar Tânia por se fechar no seu luto, depois da morte do marido: "Ele [Rato] está farto de cemitérios." Serão um trio em fuga, rumo a Lisboa, por um Portugal abstracto, até o trio se dissolver e mãe e filho prosseguirem viagem.

"O problema é chegar às pessoas. Tenho uma fantasia, como outra qualquer... Está a ver o Renoir? Conseguir fazer um filme como 'The River', sobre quatro raparigas que têm diferentes idades e estão a crescer, que se apaixonam e se separam - e as pessoas que estão a ver o filme dizem: 'Pois é, isto é assim...' Ou como a Billie Holiday, quando canta que se separou 'from my man'. Ouve-se a música e pensa-se: 'Parece que ela conheceu a minha história...' Num país que não tem tradição dramática - não temos romance, não temos teatro - , como é que uma pessoa luta para entrar dentro disso, dentro do que sustenta o filme? O Griffith dizia: 'O cinema nunca teria saído do espectáculo de feira se não fosse a narrativa.' Ora, se nós não conseguirmos lidar com a narrativa, se estamos sempre só a lidar com a imagem não chega. A poética da imagem não chega, pelo menos para mim."

viagem.

E no entanto, ela move-se. No "décor", que se insinua como um transbordo emocional de personagens inaprisionáveis. Pouco importa onde Tânia e Rato estão: os espaços que atravessam são abstracções - saberemos o destino, indicam-nos um cruzamento de Castelo Branco - e a natureza parece abraçá-los como se conhecesse os seus segredos. Como em "A Noite do Caçador", de Charles Laughton. Sapinho filmou no Sabugal da sua infância (que já servira de cenário para "Glória", o que também justifica as comparações). "Conhecia aquelas pedras, aquelas árvores. Esse é que é o cânone da natureza para mim, aqueles sítios. O que eu sei da natureza é aquilo. E isso foi muito forte para determinar onde é que as personagens iam estar. Nesta época em que falamos tanto em ecologia, no fundo temos terror, pânico da natureza, que é uma coisa hostil para nós. Acho que neste filme, apesar de eles fugirem através da natureza, ela abriga-os, protege-os. Eles ainda se sentem em casa na terra, aquela coisa do Heidegger, quando ele pergunta: mas o que é que estes gajos vão fazer à lua? A casa é aqui... E acho que eles também descobrem, no seu percurso para Lisboa, que a casa deles ainda é a natureza. E a natureza, para mim, era a zona do Sabugal, orque são as pedras que conheço, as árvores que conheço."

Mas há mais razões para pensar em "A Noite do Caçador". "Mulher-Polícia" é uma vertiginosa viagem que entra pelo onirismo, embrenhando-se na floresta dos contos de terror infantis, lugar de exclusão e solidão.

É um filme onde até o mais terrível parece mergulhar-nos numa dimensão mágica, como na cena da violação. Iluminada daquela forma, de noite, lembra a cena nocturna de "Brigadoon" (1944), de Vincente Minelli, em que Gene Kelly e Cyd Charisse se encontram na montanha, num cenário irreal.

"É um óptimo exemplo. Eu estava muito obcecado com esse cinema. Um cinema em que se consegue mover tudo para conseguir falar de coisas, falar suavemente, mas pondo tudo a trabalhar para isso. Na cena da violação é como se eu não quisesse a 'découpage', como se aquilo tivesse que acontecer frente à câmara. Ou seja, a fantasia não podia vir das possibilidades dos truques da 'decoupage' no cinema, mas sim do que era mostrado e escondido dentro do plano, através da luz. 'Brigadoon' é bom [risos]."

É um filme nocturno, crepuscular (fabulosa fotografia de Jacques Loiseleux e Miguel Sales Lopes). O dia é a viagem, mas tudo acontece de noite. Até o filme mergulhar definitivamente no escuro, na longa parte final. Apetece citar o título de Nicholas Ray, "They live by night". "O Lubitsch diz num filme: 'Os dias tomam conta de si próprios, o problema são as noites...' [risos] É um bocado verdade. Tem que ver com o sonho, também: há tantas coisas que nos acontecem de noite e nos comandam de dia. É como se eu tivesse querido cavar um túnel na noite com este filme, tentar ver certas coisas que mandam tanto em nós, porque estamos distraídos ou a dormir, e trazer um pouco disso para o consciente. Uma mãe e um filho é uma relação cega. Tanta coisa se passou antes daquela pessoa nascer, tanta coisa se passou no escuro... Depois as mães velam pelos filhos quando eles dormem..."

O escuro também é o medo.

É de noite que se dá o encontro com um ogre, o polícia, e uma protectora, a mulher-polícia. E uma mulher de rosto duro, fechado, há-de assumir uma violência quase animal. "A Amélia [Corôa] tem um lado indomável, ela própria. Lembro-me de umas bandas desenhadas que lia quando era pequeno, em que havia uma rapariga, uma índia que se chamava 'Flying Duck over East' [risos]. E quando a vi, foi um bocado um encontro com essa índia, como se ela tivesse toda a distância, força e violência do mundo, mas fosse para se proteger, uma tensão difícil de mostrar. Acho que ela tem isso. E sinto uma enorme ternura dentro da violência dela." Uma "mãe musculada", como a de Linda Hamilton em "Exterminador Implacável". E uma presença poderosa de Amélia Corôa.

Sapinho filmou "Mulher-Polícia", depois de ter estado na Bósnia, onde rodou o documentário que está agora a montar e que deverá ficar pronto este Verão. Inicialmente, eram para ser o mesmo filme: a história de uma mãe numa guerra civil. À força da abstracção, pode-se ver em "Mulher-Polícia" os fantasmas dessa contaminação: há caçadores que parece soldados, e o filme termina entre ruínas. "Nunca cheguei a filmar nada nesse sentido. Mas a nível das ideias, é normal que certas coisas tenham passado. Imaginamos que a guerra é uma coisa de outros sítios, não percebemos que o conflito está dentro de nós. Não sei se isto tem que ver com a experiência da Bósnia, mas sinto que a qualquer momento isto a que nós achamos que temos direito pode desaparecer. As guerras não são umas coisas que acontecem quando começam os tiros, começam muito antes."

É um filme belíssimo, em que a "mise-en-scène" se constrói sobre o silêncio, com planos fixos e lentas panorâmicas. Sobre o silêncio não, com a música. É um "score" de clássico sinfonismo, da autoria de Nuno Malo, saído do curso de composição para filmes - o único no mundo - da University of Southern California, em L.A. "São os encontros poéticos de que fala o Baudelaire. Foi uma coisa muito arriscada para os dois, ele nunca tinha feito uma banda sonora inteira, portanto atirámo-nos ao mar e aprendemos a nadar ao mesmo tempo [risos]. Para mim foi outro dos desafios. Não se fazia um 'score' original com orquestra em Portugal há uns 40, 50 anos. Queria lidar com a matéria cinematográfica, aprender o que era compor uma música, encontrar os temas. Só isso levou um ano."

Talvez agora se possa perceber a profecia do início. "Mulher-Polícia" é um filme de quem quer voltar ao princípio das coisas, acreditando que pode fazer cinema de maneira diferente. Foi também assim em "Punch-drunk love", de Paul Thomas Anderson, não por acaso o filme de que Sapinho mais gostou nos últimos anos. Os milagres existem.

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